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No universo imaginário do naïf

publicado: 02/05/2023 10h57, última modificação: 02/05/2023 11h03
Uma das principais artistas do estilo na Paraíba, Analice Uchôa celebra, em 2023, seus 25 anos de trajetória profissional, com suas obras expostas no Brasil e no exterior
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Uchôa cria uma atmosfera situada entre o real e o fantástico que são inspirados no meio rural, mas que adentram o universo urbano sem levar em conta barreiras conceituais ou técnicas - Foto: Edson Matos
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No ano passado, a artista paraibana de 75 anos ganhou uma homenagem na Mostra Atual Paraibana de Arte Naïf, promovida pelo Sesc Paraíba - Foto: Edson Matos
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por Joel Cavalcanti*

Tudo tem início com quadros em branco e uma predominante cor azul. É assim que começam quase todas as manhãs de trabalho em João Pessoa da artista plástica campinense Analice Uchôa. Antes de as praias, o circo e as brincadeiras de rua ganharem formas lúdicas em suas telas em arte naïf, esses temas são precedidos por uma base monocromática quase sempre azulada que domina a cena. O tom do azul é o mesmo da cor dos cabelos que Analice Uchôa possuía em um sonho que teve há 25 anos, quando se viu numa onírica exposição de quadros em branco que fez despertar o interesse da artista de 75 anos pela pintura. Se a arte naïf representa um certo tipo de inconsciente coletivo, tudo teve início com quadros em branco e uma predominante cor azul.

Formada em Psicologia, Analice Uchôa teve o artesanato como base de seu trabalho criativo. Com estiletes e goivas por ferramentas de trabalho, ela criava pequenas esculturas a partir da casca da cajazeira. Foi depois do sonho e da insistência do primo-pintor Carlos Djalma que ela se lançou no universo das tintas e pincéis. Sem sair do gênero fortemente associado à cultura popular, desse primeiro contato o que emergiu foi o naïf, por um motivo que nem ela sabe explicar. “Essa é uma pergunta sem respostas. Passei mais de um ano numa luta para saber o que eu estava pintando. Eu não sabia o que era primitivo e nem o que era naïf”, conta a artista que desde então já expôs em diversos lugares do Brasil e do exterior.

Com uma prática aparentemente rudimentar e sem as comuns preocupações com a perspectiva, proporção e relação fidedigna das cores, Uchôa cria uma atmosfera situada entre o real e o fantástico que são inspirados no meio rural, mas que adentram o universo urbano sem levar em conta barreiras conceituais ou técnicas. “Eu não sou ingênua, mas minha arte pode ser”, afirma a artista. “O maior orgulho da gente é ver que as pessoas entendem o que faço e falam a respeito sem nem me conhecerem. Eu sempre me surpreendi até onde meus quadros chegaram, mas achava natural porque eu me sentia natural”. Depois de 25 anos de carreira, Analice Uchôa começa a ter seu nome lembrado em homenagens e ter sua obra reverenciada como uma das mais expressivas do estado.

Ela saiu de Campina Grande com apenas dois anos de vida e foi morar no Roger, bairro tradicional de João Pessoa, onde coexistem simultaneamente uma vivência rural e urbana. Mas ela também percorria durante a juventude trajetos entre os engenhos da cidade de Pilões e as praias da capital paraibana, referências que estão no imaginário da artista e nas suas memórias, que ganham mais força nas cores vívidas de seus quadros. Outra característica que forma a assinatura da artista são os desenhos de personagens quase sempre pretos, quase sempre sem rostos, que eram ainda mais comuns nos primeiros anos de naïf. “No começo, não sabia fazer, e como eu faço o corpo deles preto, achava difícil colocar cor em cima do preto. Mas hoje eu perdi o medo porque acho que tinha o receio de fazer porque não tinha técnica nenhuma, sou uma autodidata”.

O reconhecimento por seu trabalho veio apenas depois de mais duas décadas de dedicação à pintura. Uma realidade que provocou ressentimento, mas que ela sempre entendeu como uma consequência da hegemonia masculina no naïf. “Não sou a melhor, mas estou entre as melhores. Quando ganhei a homenagem na Mostra Atual Paraibana de Arte Naïf, do Sesc Paraíba, eu fui criticada. ‘Por que ela?’, diziam. Eles reclamavam inclusive do preço que eu colocava nos meus quadros. ‘Por que ela está cobrando o mesmo valor que eu?’. As pessoas não acreditavam em mim, mas depois me acolheram”, remonta a artista. Mas essa experiência gerou uma união dela com outras mulheres que trabalham com naïf na Paraíba. Analice Uchôa criou um grupo só delas, que ela mesma define como sendo um grupo de sororidade. Juntas, formaram uma rede de apoio e incentivo que agora programa exposições coletivas exclusivas só para elas.

“A minha felicidade é estar sendo homenageada em vida”, conta a artista. Ela também tem sido lembrada para projetos especiais fora do país, como a ilustração do livro Os trinta dinheiros do Rei Melchior, publicado inicialmente em Portugal e, em seguida, no Brasil, por meio da Lei de Incentivo à Cultura (FMC) da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Além disso, Analice Uchôa já acumula uma fortuna crítica que não economiza nos elogios ao trabalho da artista. Além dos trabalhos que produz por encomenda, Uchôa tem se empenhado em criar várias telas que representem brincadeiras de criança para uma futura exposição. Neste momento, os quadros de Analice podem ser vistos no Celeiro Espaço Criativo, em João Pessoa, e em uma coletiva que deve ser lançada em breve, em Guarabira.

Sem seguir uma escola estética, a artista mantém de forma inquieta a obra que é uma manifestação do lirismo de seu universo imaginário. Apesar de conviver com um caso crônico de dor causado pela fibromialgia e espondilite anquilosante, uma inflamação dos tecidos conjuntivos, nada desse estado de contrição e sofrimento respinga em suas telas. “Quando começo a pintar, eu posso até piorar da minha dor. Mas isso me dá uma sensação de ‘suportar’ muito grande. Quando eu parar vai ser quando eu morrer de verdade”, finaliza Analice Uchôa.

*Matéria publicada na edição impressa de 02 de maio de 2023.