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Nos passos do mundo de Ariano

publicado: 31/07/2025 08h47, última modificação: 31/07/2025 08h47
Documentário “A Pedra do Reino e o Sertão de Dom Pantero” será lançado hoje, em João Pessoa, relacionando locais reais aos imaginados na obra do escritor
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Ariano Suassuna e Zélia, sua mulher, na divisa entre Paraíba e Pernambuco: solo sagrado | Foto: Divulgação

por Emerson da Cunha*

“Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de eu mesmo erguer de novo poeticamente meu castelo pedregoso e amuralhado, tirando daqui e dali, juntando o que acontecera com o que ia sonhando. Terminaria com um castelo afortalezado, de pedra, com as duas torres centradas no coração do meu império. (...) Seria um reino literário, poderoso e sertanejo, um marco, uma obra cheia de estradas empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes pedreguentos”. A fala de Quaderna no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), de Ariano Suassuna, é a carta de boas-vindas do documentário A Pedra do Reino e o Sertão de Dom Pantero, de Manuel Dantas Vilar, o Dantinhas, sobrinho do escritor. O filme, que atravessa referências geográficas trazidas, reconstruídas e recontadas na obra de Ariano, será apresentado hoje, às 18h30, no Centro Cultural Ariano Suassuna (Tribunal de Contas da Paraíba, Jaguaribe, João Pessoa).

O filme ilustra a estratégia literária de Ariano na transfiguração dos lugares reais em imaginados em sua obra, especialmente no contexto do Sertão paraibano, onde viveu a infância e com o qual manteve relações até o fim da vida. A estratégia seria feita pela leitura, interpretação ou recriação dos contextos e espaços do campo do real (cidades, casas, propriedades, monumentos naturais) a partir do imaginário e do imaginado, atendo-se menos a uma concepção realista do geográfico, e mais dialogando com o campo da fantasia e da criação literária, bem como da geografia afetiva. Assim, os lugares são alçados de meras representações do real para tornar-se tecido em que tramas outras são possíveis. 

Cena do documentário: imagens do Sertão inspiraram Suassuna em suas histórias | Foto: Reprodução

A percepção da transfiguração espacial havia sido ligeiramente feita por Dantinhas com a leitura de livros como A Pedra do Reino, O Rei Degolado, Ao Sol da Onça Caetana e Seleta em Prosa e Verso. No entanto, foi apenas quando se deparou com a tese de doutorado de Carlos Newton Junior, “Vida de Quaderna e Simão”, sobre espaços reais ligados às representações espaciais em A Pedra do Reino, que o tema ganhou mais corpo. Chamou-lhe a atenção as fotografias de alguns desses lugares apresentadas na pesquisa, como a casa de Quaderna, a casa de São Miguel e Clemente e a casa dos Garcia Barreto.

“A partir dessas fotos, fui relendo os livros, identificando os locais, quando surgiu a vontade de mostrá-los. Tinha que fazer com muito cuidado, porque Ariano não situa essencialmente aquele local. O local que existe não é o que está na obra”, explica. “Você tinha que dosar isso, para não estar criando, vinculando uma obra de Ariano a um local que realmente existe. Era apenas mostrar o que serviu de inspiração”.

O diretor, então, fez uma decupagem desses locais, com a execução de um projeto fotográfico, seguindo as datas que Ariano citava. “Foi quando vi a oportunidade de fazer inscrição para um projeto de documentário. Ariano é muito conhecido por O Auto da Compadecida, mas outras obras possuem a mesma grandeza e muitos elementos também”, diz.

Entre os lugares visitados pelo filme e suas transfigurações, estão a Casa da Pólvora em João Pessoa (prisão de Sinésio em A Pedra do Reino), a Casa-Forte da Fazenda Onça Malhada (palco de conflitos em A Pedra do Reino), o encontro do Rio Taperoá com o Riacho do Elo (na História dO Rei Degolado), o Convento São Francisco (calabouço onde Sinésio foi acorrentado), a pedra entre Taperoá e Teixeira (marco geográfico da saga do Rei Degolado), o lajedo da emboscada de Ludugero Cobra-Preta (cena crucial em A Pedra do Reino), a Casa dos Garcia-Barreto e a Casa-Forte da Malhada Suassuna (respaldo histórico do romance), a Casa de Detenção do Recife (onde João Dantas foi assassinado), e escritório de João Dantas (elo entre o Sertão e eventos políticos que inspiraram Suassuna).

“Todos os ambientes são transfigurados. Eles estão na obra, mas você tem que identificar onde era a origem. A gente tentou buscar esses pontos e tentar vê-los, porque Ariano descreve muito os ambientes, os climas. A gente tentou buscar também a luminosidade desse ambiente”, explica.

“Do tempo em que Ariano pensou, viveu a infância dele no Nordeste, e depois quando escreveu, buscando as memórias da infância, tem lá um sertão imutável em sua grandeza. A gente saiu buscando essa imutabilidade”, conta o diretor. “As transfigurações, modificações acontecem naturalmente, pela humanidade mesmo, pela povoação, mas há sempre uma identidade, há sempre uma beleza”.

Para ele, Ariano buscava sempre a beleza das coisas, sem esquecer a manifestação política, a identidade cultural. “Foi dessa forma que a gente entrou no Sertão, entrou na Paraíba, foi até o Litoral. Era uma busca não só da parte de Ariano, mas da escrita que ele apontou. A gente queria falar sobre os lugares, que era sair disso, do imaginário para o real”, aponta.

O documentário traz depoimentos do próprio Carlos Newton Junior e de Dantas Suassuna, filho de Ariano, mas passa longe do que se convencionou chamar de “documentário de cabeças falantes”, ou seja, filmes baseados na narração e nas falas de convidados e “especialistas”, com poucos recursos visuais. A câmera passa boa parte do tempo passeando entre e sobre as casas, as cidades, as propriedades, os monumentos naturais que inspiraram Ariano, especialmente com a leitura geográfica afetiva empreendida pelo seu filho.

Um exemplo é um movimento de câmera que simula o voo da Onça Caetana pelo Sertão paraibano. A partir de imagens de drone, o espectador é convidado também a seguir voo a partir de uma câmera subjetiva, subindo desde o solo, passeando pelo céu quente e descansando por sobre os vales.

O filme conta ainda com trilha sonora composta e executada pelo Quinteto da Paraíba especialmente para o projeto. Com base em fotografias e as narrações, o músico Xisto Medeiros teve apenas cerca de 15 dias entre composição e entrega.

“Gravei todos os discos do quinteto, produzi muitas coisas, e usei a bagagem desse tempo de 36 anos do grupo. Eu conheço a Serra de Teixeira, a Pedra do Tendó, a Serra do Pico, a Pedra do Reino em São José do Belmonte. É um universo muito nosso, o que é produzido nesse universo artístico, musical, as bandas cabaçais, a poesia sertaneja, o repente, o galope, a embolada, os reisados, muitas coisas. É uma sonoridade semiárida e ninguém melhor do que o Quinteto para fazer esse desenho sonoro. Eu me sinto muito honrado por isso”, finaliza Medeiros.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de julho de 2025.