Existem várias formas de se contar a história da literatura paraibana. A publicação Paraíba na Literatura IV traz algumas possibilidades de fazer esse recorte temático e temporal a partir da trajetória pessoal de importantes 20 escritoras e escritores perfilados por outros autores e especialistas de renome no estado. O livro produzido pela Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), por meio da Editora A União, tem, inicialmente, um caráter institucional destinado a ser divulgado apenas para autoridades de outros estados e países em passagem pela Paraíba. Mas assim como aconteceu com as edições anteriores, a expectativa é que em breve o guia que preserva a memória dos maiores nomes que marcaram a literatura paraibana possa ser comercializado com o público em geral.
A quarta edição traz destaques de nomes do universo feminino, como Anayde Beiriz, Olivina Olívia, Maria das Neves Barbosa Pimentel, Janice Japiassu, Irene Dias, Débora Ferraz, Clotilde Tavares, Lenilde Freitas e Ângela Bezerra de Castro. Escritores que estão marcados no início dessa história também têm espaço no livro, a exemplo de Pereira da Silva, o primeiro paraibano a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (APL), além de Pedro Américo – autor de quatro romances, além de livros sobre botânica, filosofia e temas científicos. Entre os biografados, ganha visibilidade o trabalho de jornalistas que se dedicaram também à literatura, como Nathanael Alves, Hélder Moura e Juca Pontes. Fecham a relação de perfilados, ainda, Félix Araújo, Figueiredo Agra, Gil Messias, Geraldo Maciel, Adhemar Dantas e Tarcísio Meira César.
A construção dessa história através de datas e nomes não é linear e nem sempre segue uma direção única no sentido de ampliar o acesso e a diversidade do que é produzido e de quem está autorizado a produzir no estado. Mas não parece ser mera coincidência que a publicação traga na mesma edição nomes como Olivina Olívia Carneiro da Cunha, através do texto Tecendo fios da memória e da paixão pela poesia, da professora e escritora Ana Maria Coutinho de Sales; e de Débora Ferraz, perfilada pelo escritor Astier Basílio em Débora Ferraz e a tenda aberta no deserto. Cem anos separam o nascimento delas, mas a história tem mais pontos em comum do que se poderia supor. Prestes a completar 36 anos, Débora Ferraz é autora de obras como o premiado romance Enquanto Deus não está olhando e do mais recente Ogivas, uma antologia de contos.
“É difícil não pensar no privilégio imenso que é ter tido outras gerações de mulheres escritoras para me espelhar (muitas delas não tinham nem o direito de ler sem ter que brigar por ele). A necessidade de espelhamento, de representatividade, às vezes a gente não se lembra do tanto que importa, é o que faz com que a cadeia de uma cultura não se quebre”, considera a pernambucana de Serra Talhada radicada em João Pessoa. “E ainda que o que eu tenha neste campo não seja grande, me foi muito útil e eu estou mais do que interessada em compartilhar, apoiar, e estender a mão para as próximas gerações”. Essa disposição de Ferraz é a mesma que tinha Olivina Olívia, uma das primeiras mulheres da Paraíba, no começo do século 20, a publicar livros a exemplo de Migalhas de Inspiração (sem data) e Barão de Abiaí (1940).
Essa é a percepção da pesquisadora Ana Maria Coutinho. “Foi através de sua ousadia de frequentar ambientes que antes eram espaço tradicionalmente destinado aos homens, a exemplo da literatura e do jornalismo, que ela conseguiu publicar. Desde a adolescência, Olivina já produzia textos, mas foi quando terminou o curso do magistério que começou a publicar crônicas e poesias na revista Era Nova, Flor de Liz e no Jornal A União, na Página Feminina. Esse exercício de ler e publicar seus textos provavelmente impulsionou para que mais tarde ela reunisse esses textos e escrevesse seus livros”, remonta a especialista sobre a ensaísta, professora, jornalista e poetisa mais conhecida por dar nome a uma escola localizada no Centro de João Pessoa.
Para Ana Maria Coutinho, Olivina desenvolveu uma vida muito inspiradora, vinculando diretamente seu ofício ao compromisso de trabalhar em favor dos excluídos e da educação como um meio de esclarecer as pessoas e de desconstruir o preconceito em relação às meninas poderem estudar. “Ela atravessa os séculos e continua nos ensinando que entre a literatura e a história sempre pode haver uma novidade a ser descoberta”. A pesquisadora conta que, em diversas instituições onde foi pesquisar, era reiteradamente questionada sobre os motivos de investir em nomes de mulheres que não tinham a mesma influência de seus conterrâneos homens. “É muito importante preservarmos cada vez mais essa trajetória de Olivina Olívia”, defende ela.
Essa luta para que as meninas enxerguem na literatura o seu próprio futuro deságua em Débora Ferraz, que, apesar de ter transcorrido um século, ainda se questiona se o espaço a ela reservado é realmente merecido. “Acho que uma coisa que posso dizer é que às vezes eu mesma contesto e penso: será que eu deveria mesmo estar aí no meio de tanta gente que fez tão mais do que eu? Digo isso sem falsa modéstia, porque acho que nem modéstia é. É mais uma sensação de ‘eu não tenho nem roupa pra isso’. Então quando a gente pensa assim: que é um elo numa cadeia, fica mais fácil entender qual é nossa ‘roupa’. Qualquer impressão que se assemelhe a uma síndrome de impostor se dissipa, para a escritora, diante do texto de Astier Basílio sobre si e que os leitores agora terão acesso. “Acho que posso dizer que fiquei tocada com a força desse ofício. Considero isso um mérito do texto e da pesquisa de Astier, claro. Mas, sim, naquela hora da leitura, fiquei orgulhosa do caminho percorrido”. Caminho este que é a própria história da literatura paraibana.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de fevereiro de 2023.