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Nova série do quadrinista conquista prêmio em terras asiáticas para adaptação cinematográfica, e outras obras do paraibano estão sendo produzidas para plataforma de ‘streaming'

O cangaço de Shiko: do Sertão da PB a Seul

publicado: 14/08/2022 08h00, última modificação: 14/08/2022 08h49
Shiko-carniça

Cena inédita do ‘Carniça e a Blindagem Mística - Vol. 3: A Morte Anda no Mundo’ - Foto: Imagens: Shiko/Divulgação

tags: shiko , carniça , bucheon , carniça e a blindagem mística , quadrinhos , hq , naff

por Gi Ismael*


Em 2020, o quadrinista e grafiteiro Shiko começou a publicar em sua conta do Twitter páginas avulsas de um projeto ainda incerto, um projeto aos poucos afiado e amolado na pedra. Entalhada nas memórias de centenas de pessoas, a série de histórias em quadrinhos Carniça e a Blindagem Mística logo se popularizou e começou a ser impressa de modo independente. A história mal havia continuado quando Shiko recebeu a proposta de adaptar a trama para o cinema e, meses depois, em julho passado, o projeto do longa-metragem já conquistou seu primeiro prêmio de incentivo, em um festival internacional em Seul, na Coreia do Sul.

Carniça… levou dois prêmios no Bucheon International Fantastic Film Festival, que faz parte da Network of Asian Fantastic Films Project Market, vencendo o grand prix Bucheon e ainda o troféu Blood Window. Sob a alcunha de Carrion – tradução de “carniça” para o inglês –, a iniciativa, que já havia conseguido o patrocínio de 25 mil dólares ao ser selecionada para o evento, arrebatou ainda 15,3 mil dólares e uma viagem para o Ventana Sur, evento audiovisual na Argentina. “Carniça representa todas as coisas boas que um enredo brasileiro fantástico pode oferecer ao mundo: um faroeste com cangaceiros, que também é um filme de horror e um conto de vingança. Baseado em uma história em quadrinhos excepcional, o projeto da (diretora) Renata Pinheiro é um dos mais promissores do ecossistema internacional do cinema fantástico”, disse o júri ao anunciar o prêmio.

“O parecer do festival é a coisa mais linda. Me surpreende e fico muito empolgado, porque é um projeto que nem a história original tinha acabado e já despertou esse interesse e retorno”, disse Shiko, ressaltando que quando o convite para o filme surgiu, apenas dois volumes de Carniça e a Blindagem Mística haviam sido lançados.

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Página inédita do volume 3 de 'Carniça e a Blindagem Mística'

A ideia para o longa-metragem surgiu quando o ilustrador começou a publicar alguns trechos da HQ em suas redes sociais. “André Pereira, produtor carioca, falou comigo quando eu tinha lançado o primeiro volume do Carniça… e ele já estava interessado. Falei para esperarmos um pouco, deixar a história andar mais para ver se valia a adaptação”, comentou Shiko. “Alguns meses depois, ele voltou para João Pessoa, a gente foi tomar uma cerveja, comer uma fava ali no Bar do Baiano e acertamos essa liberação e a negociação da obra para adaptação”, contou.

Empolgados com a ideia, os dois partiram para os detalhes iniciais da produção: começar a definir a equipe. Renata Pinheiro, cineasta pernambucana de extenso currículo que inclui direção de arte em Amarelo Manga (2003) e Tatuagem (2011), foi escolhida para a direção. “Conversamos sobre a importância de uma mulher dirigir esse projeto, por abordar o feminino no centro da história em meio a um universo muito violento. Isso merece ser tratado com cuidado e Renata foi a pessoa ideal, principalmente por ser uma profissional talentosíssima”, disse o autor.

O título da obra já evidencia o conteúdo, mesmo que na superfície: Carniça e a Blindagem Mística é uma história que une base de pesquisa histórica e o tempero de um roteiro fantástico. A série do melhor estilo “nordestern”, como diria a crítica de cinema Maria do Rosário Caetano, é um terror no qual Mazinha de Beata é violentada por bandoleiros no Sertão e, com ajuda de seu recém-formado grupo de cangaceiras, faz o possível e o improvável para resgatar seu filho das mãos do bando de marginais.

Pensada inicialmente para ser publicada em três volumes, a série virou uma “trilogia de quatro partes”, revelou o autor. “O plano era terminar no terceiro volume, mas falhei miseravelmente”, brincou Shiko. “Quando estava fazendo a terceira parte, vi que não ia caber tudo ali. Mas entendo que faz parte também do meu processo de criação caótico. Vou criando à medida que a história evolui. É um freestyle muito doido – mas até que tem dado certo”, contou aos sorrisos.

É perceptível quando uma obra é feita com paixão, amor pelo produto. O resultado dessa imersão de Shiko veio esculpido como obras impactantes, hipnotizantes. O primeiro volume, de subtítulo É bonito o meu punhal, foi lançado em outubro de 2020 e garantiu a Shiko prêmios nos maiores eventos nacionais do ramo, como o HQMix e o Prêmio Grampo de Ouro, feitos importantes para uma série totalmente independente, de tiragem pequena e menos de 50 páginas. Com o segundo volume, A tutela do oculto, não foi diferente. Lançada em maio de 2021, a HQ competiu em cinco categorias do CCXP Awards, emplacando Shiko como Melhor Desenhista em 2022. Se estendendo ainda por mais duas partes, Carniça… já é a história a qual Shiko dedicou mais de seu tempo, é o mais vasto de seus mundos até agora publicados.

“Por muito tempo, fugi de fazer uma história de cangaço. Eu corria desse sentimento de obrigação por ser sertanejo de ter que fazer uma história assim. Fiquei esquivando até que eu parei com essa besteira e tirei as anotações da gaveta”, contou. “Essa obra me toca pessoalmente pelo Sertão, pelo meu berço. Eu vivi no Sertão até os 20 e poucos anos de idade e sou neto daqueles avôs vaqueiros mentirosos (risos), então passei a vida inteira ouvindo histórias”, contou o quadrinista nascido no município de Patos, interior da Paraíba. “Escrever sobre esse mundo é muito confortável para mim. Eu estou em casa, é uma paisagem que eu conheço, são histórias que eu conheço e são histórias que eu me divirto muito, inventando, reinventando, costurando, construindo, recontando a palavra com imagem. É o quadrinho mais prazeroso que já fiz, apesar de ter sido o que mais me deu trabalho também”. Para Shiko, que teve suas histórias ambientadas do Litoral ao Cariri, era natural que seus pincéis chegassem ao Sertão.

“Eu fiquei totalmente obcecado por esse universo”, contou Shiko, que comentou ter livros dos mais específicos sobre o cangaço: obras sobre os punhais, sobre a estética, biografias de homens e mulheres cangaceiros. “É um mundo que não acaba, mas precisa acabar pelo menos na parte que me toca”, sorriu. “A história realmente acaba no quarto volume, está definido. Com isso, eu consigo acabar e vou partir para outros mundos. Outras gavetas precisam ser reabertas”.

Carniça e a Blindagem Mística - A morte anda no mundo será lançada no final deste mês e, para a felicidade de muitos, os dois primeiros volumes, esgotados na loja oficial de Shiko no Instagram (@shikoloja), voltam ao estoque graças a uma parceria com a gibiteria Monstra, de São Paulo.

Outras adaptações
Carniça… não é a única produção audiovisual de Shiko saindo do papel. Lavagem (2011), curta-metragem de terror assinado por Shiko que originou a novela gráfica homônima em 2015 (lançada pela Editora Mino), ganhará uma adaptação em longa dirigida por Dennison Ramalho, diretor de Morto não Fala (2018). O filme, negociado para a plataforma de streaming Globoplay, está em fase de planejamento. A Globo Filmes anunciou no Festival de Cannes, na França, uma lista de produções futuras e, entre elas, está a adaptação cinematográfica de Três Buracos, álbum publicado em 2019 pela Mino. O filme será dirigido por Caíto Ortiz, da série Coisa Mais Linda (Netflix).

Enquanto as duas obras não têm data de estreia ou de início das filmagens, Shiko adianta que neste semestre será publicada uma parceria sua com o portal UOL, um documentário sobre milícias que tem depoimentos animados ilustrados pelo artista paraibano.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de agosto de 2022