Para muitas civilizações, ao longo dos passos erráticos e cambaleantes da humanidade rumo ao futuro, várias vezes aconteceu um “fim do mundo”. Até mesmo nos períodos de eleição em países democráticos é tido como o “fim de uma era”. No universo ficcional, até as bordas das últimas páginas podem ser consideradas o apocalipse dos personagens, assim como alguns navegadores europeus do século 15 pensavam quando se chegava “ao fim da beirada dos oceanos”, em um não confiável novo horizonte.
O fim de mundo é de praxe na literatura, cinema, quadrinhos e afins – até mesmo denominado como um “clichê” –, porém o que oferece uma sobrevida do tema é como esse cenário e como os personagens se comportam após o final de tudo. Esses (re)começos são o diferencial.
Em Verde Gás (Editora O Grifo, 128 páginas, R$ 69,90), o estopim é um ataque de gás tóxico que é acometido na cidade de João Pessoa, na Paraíba. Um único sobrevivente decide permanecer no condomínio fechado onde vive, enterrando corpos e investigando a vida dos vizinhos mortos.
Essa imersão do escritor e jornalista Ricardo Oliveira – tanto na distopia quanto nos seus primeiros passos como romancista – pode ser conferida em uma das séries de lançamentos que o autor está realizando neste mês, no mesmo local onde se passa sua história: hoje, a sessão de autógrafos acontecerá na Livraria A União, no Espaço Cultural, a partir das 19h, na capital paraibana.
Na ocasião, haverá um bate-papo entre o autor e o escritor paraibano Tiago Germano, acerca do tema “João Pessoa distópica: ligando alertas para o futuro”.
O começo do fim nasceu em 2018, quando Ricardo Oliveira observava casas e prédios abandonados no meio da cidade. “Comecei a reparar que a gente tinha minicenários pós-apocalípticos por aí. Toda rua tem uma casa velha, com mato crescendo, e isso pareceu aumentar na pandemia”, relembrou o autor. “É mais triste ainda no Centro, onde a gente vê muitos prédios históricos. Parece o fim do mundo mesmo”.
Assim como no imaginário literário, o fim do mundo também está presente nas religiões, inclusive sendo usado de forma não tanto ortodoxa. Uma das gêneses para o apocalipse da obra residia não apenas nas paredes desgastadas das edificações no Centro Histórico da capital: o inferno que se tornou os debates por conta da cada vez mais crescente ligação entre evangélicos e política no Brasil contemporâneo. “A cultura evangélica começou a fazer parte do país de um jeito novo nos últimos anos e acho que é importante termos mais obras discutindo tudo isso, especialmente com visões de dentro”, apontou ele, que tem uma longa experiência na vivência com denominações evangélicas, desde a infância. “Isso aparece na narrativa em épocas e contextos diferentes, colocando o personagem diante de dilemas de fé desde a puberdade até a vida adulta nas eleições de 2018”, complementou.
Independente das discussões acaloradas específicas nas redes sociais e fora delas, para o autor, toda a vivência religiosa precisa lidar com o fim. “Isso sempre foi e provavelmente vai continuar sendo assim. Só que, depois de um tempo, eu comecei a perceber as narrativas bíblicas de forma mais literária e não só religiosa. Então até a narrativa do dilúvio e da arca de Noé, por exemplo, é um tipo de fim de mundo nos moldes de filmes apocalípticos, que o diga Darren Aronofsky. Essa história é mais importante para Verde Gás do que o livro do Apocalipse, por exemplo. E aí, curiosamente, a leitura distorcida desse tipo de alegoria bíblica costuma ser a base para pensamentos fascistas, na ideia de que ‘só escolhidos’ merecem alguma salvação. Um discurso que foi e continua sendo bem presente na política brasileira desde 2018”, apontou Ricardo Oliveira.
Depois de promover o lançamento no Natal na Usina, na convenção Top! Top! e na Livraria A União, próximo sábado (16) será a vez da Feira Armazém (Espaço Cultural), das 10h às 20h, e no domingo (17), na Virada Nerd, evento da Livraria Leitura, a partir das 18h.
Autores acomodados
Assim como aquelas pessoas que carregam pelas ruas cartazes anunciando o fim do mundo, o escritor também “vestiu a camisa” na campanha de financiamento coletivo, quando encarnou o protagonista nos corredores da edição inaugural do Imagineland, evento destinado à cultura pop que aconteceu no final de julho, no Centro de Convenções de João Pessoa. Assim como os cosplays (os fãs que se vestem como seus personagens favoritos dos games, cinema, séries e HQs), Oliveira estava munido de máscara e equipamentos que o seu personagem no livro.
“Fazer o marketing de Verde Gás, para mim, é a segunda parte mais importante do processo. Eu acho que autores são muito acomodados nesse sentido, ou mesmo não sabem muito bem o que fazer. E eu detesto a ideia do livro ficar limitado a alguns poucos exemplares impressos”.
Pelo visto, o fim do mundo de Ricardo Oliveira se concretizou. E, tendo um vislumbre do futuro, após os lançamentos do Verde Gás se dissipar, haverá outros (re)começos para outras obras do autor.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de dezembro de 2023.