Além da vaidade, o espelho corriqueiramente é um objeto usado para ter um efeito de susto nas produções de terror ou até mesmo dar uma de Google e informar quem seria a mais bela do reino, caso ele tenha origem na magia. Para o roteirista Alexandre Callari – veterano escritor de romances com base no gênero – o espelho serve como mote para contar um labiríntico enredo de paranoia, ira e perdas no seu novo álbum em quadrinhos, com desenhos de Robson Moura, aproveitando o ensejo de hoje, em plena celebração do Dias das Bruxas.
Espelho Meu (Pipoca e Nanquim, 132 páginas, R$ 79,90) acompanha uma atriz chamada Laura Brondi, que chegou a brilhar tanto nas telinhas da TV quanto nas telonas do cinema, servindo de inspiração para toda uma geração quando jovem. Agora, ela precisa encarar a ladeira da decadência, servindo como um prato principal (e cheio) para as fofocas na imprensa e mídias sociais.
“A ideia nasceu de uma antiga série de TV que fui contratado para escrever, mas que nunca foi filmada”, pontuou Alexandre Callari. “Lá, criei uma personagem que era um tipo de proto-Laura Brondi. No fundo, o roteiro da série e minha HQ têm pouca coisa em comum, salvo o mote principal”.
Uma atriz em decadência que quer dar a volta por cima e começa a conversar com sua própria imagem no espelho bastou para atiçar o roteirista a enveredar pela história novamente, agora em forma de quadrinhos. “A partir daí, desenvolvi uma trama de escopo muito maior, com vários desdobramentos, coadjuvantes e uma conclusão surpreendente. Para mim, Espelho Meu é um terror psicológico, de final dúbio, daqueles que deixam o leitor refletindo sobre o que aconteceu”, explicou ele.
A protagonista, por ser uma mulher, foi uma das preocupações dos autores para não cair nas “armadilhas” dos estereótipos vistos pelo prisma masculino. “É um ponto delicado, o qual eu e o Robson endereçamos com muito respeito e carinho”, frisou Callari, por Laura Brondi ser o âmago da história. “Se ela não funcionasse, tudo o mais estaria perdido. Para cumprir esse desafio, pedi ajuda da minha esposa, Ysly Bertuce Callari, que avaliava a obra em tempo real conforme ela vinha sendo desenvolvida, e, num segundo momento, para minha amiga e editora de vídeo do Pipoca e Nanquim, Jéssica Torlezi, que fez uma importante leitura crítica”. Além de ser um dos autores da editora paulistana (que também é um canal sobre quadrinhos no YouTube), Alexandre Callari é um dos sócios, tradutor e editor do catálogo.
Independente do gênero, credo, etnia ou de qualquer outra diferença que exista na raça humana, sempre sustentei que, do ponto de vista emocional e psicológico, nós somos, sim, todos iguais - Alexandre Callari
“Dito isso, conforme eu escrevia, atentei-me a uma máxima em que acredito. Independente do gênero, credo, etnia ou de qualquer outra diferença que exista na raça humana, sempre sustentei que, do ponto de vista emocional e psicológico, nós somos, sim, todos iguais. Isso quer dizer que todos querem as mesmas coisas, não importa se for um indivíduo na Europa, Américas, Ásia, África ou Oceania. Todos querem paz na vida; querem viver em harmonia; querem obter êxito profissional; querem ter um bom relacionamento amoroso; querem concretizar seus sonhos. De maneira igual, todas as pessoas têm suas neuroses, medos, anseios, inseguranças, desejos... Claro, a forma desses pode mudar, mas o mecanismo mental que mobiliza as pessoas nessas direções, é o mesmo. Nesse sentido, procurei escrever sobre o ser humano universal, confiando que o suporte que tinha da Ysly e da Jéssica impediria que eu deslizasse em momentos de suma importância, onde a diferença entre o pensamento de um homem e de uma mulher é clara”, completou o roteirista.
Bem diferente das séries e filmes de terror – nos quais se pode extrair o medo do espectador através de técnicas sonoras, por exemplo – os quadrinhos “capturam” a atenção do leitor ou da leitora de forma visual. Por conta de não usufluir alguns artifícios específicos vistos no audiovisual, é mais difícil extrair o medo nos quadrinhos, independente de ele ser mais psicológico ou mais físico? “É preciso diferenciar o terror verdadeiro do mero susto. Pode parecer mais fácil fazer terror no cinema, mas, na verdade, essa é uma grande armadilha na qual 90% dos diretores contemporâneos caem. Se quando o filme termina, o público vai embora da mesma maneira como entrou, independente de quantos sustos tenha tomado, a sensação não é diferente da de ter assistido a um filme de qualquer outro gênero”, atentou Callari. “Vou trapacear aqui e recorrer aos clássicos, mas sabemos o quão assustada a plateia saía das exibições de O Exorcista e Tubarão. Isso é terror! Algo que permanece com você por semanas, talvez meses, mesmo após o término da sessão. É aquele sentimento incômodo na barriga, um eriçar de pelos na nuca, uma sensação não necessariamente nauseabunda, mas que retorna à sua mente nos minutos que precedem o sono, quando você está em silêncio na cama, com as luzes apagadas. Esse sentimento pode ser alcançado em qualquer forma de expressão artística, basta que a construção da obra tenha sido certeira. Tenho recebido muitas mensagens sobre o final de Espelho Meu, o que me faz crer que, pelo menos desta vez, acertei isso em cheio”.
Prosa versus quadrinhos
Na prosa, o terror é o grande protagonista da escrita de Alexandre Calarri, que já lançou obras como a trilogia Apocalipse Zumbi (Generale) e A Floresta Das Árvores Retorcidas (Pipoca e Nanquim). Espelho Meu não é sua estreia como roteirista de quadrinhos: no começo do ano passado, ele apresentou (com desenhos de Alan Patrick) Arena, um drama que tem como cenário outra paixão do escritor: as artes marciais e o MMA.
Porém, como “treino é treino” e “luta é luta”, construir a narrativa para um romance de terror é diferente de produzir um roteiro para uma HQ do gênero. “Tive bastante dificuldade no início. Quando escrevo em prosa, meu trabalho é imergir o leitor na atmosfera das palavras, de modo que ele se sinta dentro da história, que consiga enxergá-la em sua mente. A leitura de um romance está sempre competindo com dezenas de influências externas, desde um barulho irritante na rua, até alguém desviando a atenção do leitor. Por isso, é necessário um esforço enorme para mantê-lo grudado à história. Essas mesmas influências externas também podem, evidentemente, atrapalhar a leitura de uma HQ, mas os quadrinhos possuem a vantagem do impacto visual da arte, o qual não pode ser subestimado”.
Tanto que Alexandre pôs um “freio” às cenas exageradamente descritivas, passando o bastão para que Robson Moura tivesse mais liberdade com a captação das informações essenciais colocadas pelo roteirista para que o desenhista construísse os quadros. “Existe diferença também na ambientação. Numa HQ, o leitor vê a cena, num livro, não. Fora isso, gosto que minhas HQs tenham leitura ágil. Portanto, eliminei desde a minha primeira graphic novel, Arena, o uso de narrador em primeira ou em terceira pessoa, que em geral aparece no formato do balão explicativo. Nesta abordagem, a história é levada adiante pelos diálogos e imagens; algo diametralmente oposto ao que faço na minha prosa, na qual sempre utilizo um narrador em terceira pessoa onisciente. Enfim, são muitas as diferenças, mas o importante é conhecer as peculiaridades de cada linguagem e esforçar-se para alcançar um resultado final competente”, justificou ele.
Ávido consumidor do gênero de terror, o leque de inspirações de Alexandre Callari é bastante ampla, seja no audiovisual ou nos próprios quadrinhos. “Sempre busco contato com coisas que não conheço – não necessariamente contemporâneas – para ampliar meu repertório e ver qual a visão de outros criadores para determinado assunto. Sou fã incondicional dos clássicos do gênero, então, sempre que possível, estou relendo alguma coisa”.
Nos quadrinhos, Callari busca com frequência HQs antigas de horror de editoras norte-americanas como a Warren, Atlas e Charlton. “Por mais que essas histórias ainda tivessem uma linguagem incipiente, fico surpreso com a criatividade daqueles autores e a quantidade de informação que era inserida em poucas páginas. Alan Moore, claro, foi o cara que me levou a querer ser escritor, depois que eu li o seu Monstro do Pântano, mas me inspiro menos na forma dele escrever e mais no que ele representa como autor; pra mim ele é um verdadeiro farol, que mostra a todos na indústria como sair da tempestade e chegar à praia em (relativa) segurança”.
Já no cinema, ele gosta muito da linguagem usada nos anos 1970 e 80. “Mas aprendi a admirar o moderno cinema de terror alternativo, feito por produtoras como a A24”, finalizou Alexandre Callari.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 31 de outubro de 2023.