Fazer-arquitetura, diáspora flutuante, Atlântico negro. Tecidos de índigo, com bordas ondulantes, tremulam em camadas que justapõem as cerca de 20 obras, entre fotografias, instalações, poemas e colagens da exposição Respirando Underwater – Kont from the Inside, do coletivo Masonn. Inaugurada no último sábado (27), no primeiro piso da Torre da Estação Cabo Branco, na orla da capital, a mostra apresenta um diálogo entre arte contemporânea, memória histórica e resistência cultural, inspirada nos trabalhos do sociólogo Paul Gilroy, da romancista Edwidge Danticat, da coreógrafa Léna Blou e do arquiteto Jack Berthelot. Aberto à visitação pública (de terça a sexta-feira, das 9h às 18h; sábado e domingo, das 10h às 18h), o evento integra a programação da Temporada França–Brasil 2025, em cartaz até o dia 12 de dezembro.
O projeto contempla uma travessia conceitual e estética, ancorada nas reflexões do pensador britânico Paul Gilroy em sua obra O Atlântico Negro (Editora 34, 2012). Mais do que um espaço geográfico, o Atlântico é aqui entendido como território simbólico de circulação, recomposição e invenção das culturas afro-diaspóricas, onde as marcas da violência colonial convertem-se em matéria de criação e em possibilidade de futuro.
Uma tal concepção faz-se nítida no espaço artístico. Em setores divididos por tecidos que variam tonalidades do azul do mar, registros fotográficos e outros materiais, como fitas e tiras de papel, dão conta dos elementos expográficos ali presentes. Imagens de ondas rebentando na beira da praia, por exemplo, disputam por entre adjacências com pinturas em tecido de padrões afro, sugestivas do sol, da maresia, ou mesmo vórtices a voltear infinitesimal sobre fragmentos de gotículas, respingando a violência do êxodo coercitivo dos atlânticos povos.
O artista visual franco-brasileiro Serge Huot, produtor da exposição, explica o sentido de Respirando Underwater: “Ela explora a capacidade de ‘respirar debaixo d’água’, de sobreviver e manter o fôlego apesar das opressões da história, afirmando ao mesmo tempo narrativas afro-diaspóricas situadas, sensíveis e encarnadas”.
Ele acrescenta que a ideia nasceu do desejo do coletivo de pensar o Atlântico não como uma fronteira, mas como um espaço comum. “Os artistas quiseram tecer pontes entre o Caribe, o Brasil e a África, convocando memórias vivas, práticas vernáculas e imaginários poéticos”, diz ele.
Em outro ponto, uma rosa negra ostenta mensagem, como que feita em papel de pão, costurada à linha vermelha (os laços de sangue que untam as almas separadas pelo mar?). Súbito, um painel em branco impõe-se ao olhar de quem observa, suscitando dúvida, silêncio, devaneio. Trazidas por outras ondas, fotos daquilo a que o etnólogo e antropólogo francês Marc Augé (1935–2023) com razão chamaria de “lugares”, espaços dotados de identidade, pertencimento e produção de afeto.
Não à toa, a ideia passa por dizer que até mesmo a arquitetura informa sobre o modo de vida das pessoas, suas circunstâncias de vida socioeconômica e cultural. “Esta obra pode ser uma morada para o seu espírito. A arquitetura é uma morada para o seu espírito. E você pode reivindicá-la com justiça, e reivindicá-la não é reivindicar algo branco, ou algo distante de quem você é como pessoa negra”, atesta o texto de uma das fotografias.
Horizontes têxteis
Destoando de visada simplificadora, as legendas das imagens, inscritas em colagens de papel colorido, mantêm as especificidades dos vernáculos afrodescendentes, indígenas (e, a um só tempo, globalizados) que atravessam os artistas do coletivo — quais sejam, Wendie Zahibo, Anaïs Cheleux, Yoanh Azema, Jeebrahil, Keren Lasme, Alejandra e RD/WL, além de vários colaboradores e parceiros locais, que participaram principalmente das fases de produção, como a residência Arapuca Cultura e Arte, fundada por Serge, e o artista brasileiro Pedro Anisio. Ora mostram-se no inglês, no português, ora em francês, movendo a boa inquietude da arte, como no trecho “Il est impératif de garder espoir, même quand la rudesse de la réalité pourrait suggérer le contraire” (em português: “É fundamental manter a esperança, mesmo quando a dureza da realidade possa sugerir o contrário”).
Essa diversidade não é mero recurso estético, mas traduz a multiplicidade das experiências afro-diaspóricas. Cada obra, em sua singularidade, funciona como fragmento de uma memória maior, que só pode ser compreendida por meio de articulação coletiva. Arquivos históricos, lembranças familiares e imaginários partilhados são reconfigurados, permitindo que novas leituras e sensibilidades venham a emergir.
“Pensada por Alejandra Loreto, a cenografia tem suas raízes na geografia do Cabo Branco, do ponto mais oriental das Américas, de frente para a África. Horizontes têxteis, suspensos e transparentes, criam corredores porosos, atravessados pela luz e pelas obras, como pontes simbólicas entre as duas margens do Atlântico negro”, analisa Huot. “As obras foram escolhidas pela sua capacidade de ativar arquivos, memórias e gestos ligados ao Atlântico negro, mas também pela sua complementaridade. O objetivo foi compor um espaço comum onde diferentes vozes, mídias e sensibilidades dialogam”.
A cartografia sensível, que utiliza a técnica de tingimento têxtil do batik — caracteriza-se pela aplicação de várias camadas de cera sobre o tecido artesanal —, realizada na Costa do Marfim com o ateliê Alibatik, em Grand-Bassam, foi um curioso procedimento presente à produção. “Mais do que uma simples produção coletiva, ela tomou a forma de um verdadeiro laboratório onde cada participante experimentou novos gestos e suportes”, afirma Serge.
Para além do mero contemplar das obras, o visitante é instigado a experimentar a ideia de que o oceano, outrora espaço de sequestro e dor, pode também se tornar uma casa compartilhada, território de pertencimento e invenção. Essa proposta é particularmente relevante no contexto contemporâneo, marcado pelo recrudescimento do racismo estrutural, pela crise migratória global e pelo avanço de discursos xenofóbicos. Entre África, Caribe e Brasil; entre passado, presente e futuro, redesenha-se o mapa simbólico do oceano que aparta e reunifica seus povos.
“Esperamos que o público perceba o Atlântico não mais como um espaço de separação, mas como uma casa compartilhada, viva e em movimento. A exposição propõe mergulhar nas memórias afro-diaspóricas e indígenas para imaginar futuros desejáveis, onde arte, cuidado e transformação se entrelaçam. O resultado é um mapa têxtil poético, que reúne fragmentos, contas, costuras e escritas, como uma memória flutuante da diáspora”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 1º de outubro de 2025.