No ano passado, grandes nomes da música popular brasileira cruzaram a casa dos 80 anos — foi o caso de Chico Buarque, Marcos Valle, Edu Lobo e Wanderléa. Neste ano, o abre-alas do bloco dos octogenários ficou a cargo de Geraldo Azevedo, com oito décadas completadas no último dia 11 de janeiro. Em entrevista exclusiva para A União, Geraldo passeou por sua trajetória de quase seis décadas como músico, conversando sobre as influências que moldaram seu estilo, os percalços enfrentados durante o percurso, bem como os planos para o futuro.
“Meu negócio é cantar”, diz Geraldo, com a simplicidade de quem encara o palco como extensão de sua vida. Em território continental como o Brasil, o verdadeiro trabalho está, para o músico, nas viagens, parte considerada como a mais árdua de sua profissão. “Eu sempre digo que meu trabalho é viajar, porque cantar, para mim, não é trabalho”, completa.
Sua ligação com a Paraíba sempre foi muito forte, até porque, por aqui, o artista construiu parcerias de grande importância para sua carreira. “Fiz muitos trabalhos com o Jackson, com o Sivuca, além da minha parceria com o Zé Ramalho e Vital Farias”. E como esquecer o cantor e compositor paraibano Tadeu Mathias, que substituiu Geraldo no icônico show Baião de Dois, em João Pessoa, ao lado de Elba Ramalho? “Quando chegou ao Rio —, eu me lembro que dividi o apartamento com a Elba — ele veio morar com a gente. Era nosso hóspede. Ele é um cantor muito grande, me dá muita luz”, relembra.
Geraldo conta que, nos últimos anos, Tadeu passou a lhe acompanhar semanalmente, ministrando aulas de técnicas vocais para o aperfeiçoamento do cantor. Ele comenta que, quando via Moraes Moreira cantando, manifestava o desejo de cantar ainda melhor. “Depois de velho, comecei a aprender a cantar de verdade”, brinca.
A relação com o público, construída em décadas de apresentações, é alimentada por uma produção musical que transita entre o regionalismo nordestino e influências diversas da música universal, destacando a Bossa Nova como fundamental para o seu cancioneiro.
Filho da Bossa
É de 1966 a carteira da Ordem dos Músicos de Geraldo. Ganhou seu primeiro violão aos cinco anos, mas só começou a tocar para valer aos 16, quando entrou na banda Sambossa, oriunda de sua cidade natal, Petrolina.
O convite partiu do saxofonista e organizador do grupo Fernando José Rego, considerado como seu primeiro mestre. “Ele me viu tocando e, como eu comecei muito pela Bossa Nova, ele me convidou”. A partir dali, o compositor não parou mais de estudar, como autodidata, sobre a sua maior paixão — a música.
Por intermédio de Fernando, conheceu Edésio dos Santos, contemporâneo de João Gilberto, a quem Geraldo, ainda com 16 anos, logo foi apresentado. Na ocasião, João Gilberto viajava para Juazeiro em visita ao pai, que estava doente. Geraldo guarda na memória os detalhes visuais daquele grande encontro: “Eu encontrei João empurrando uma bicicleta. Não estava nem pedalando. ‘Vamos marcar esse encontro para amanhã’. Mas, infelizmente, naquela noite, o pai dele morreu e não houve o prazer de apertar a mão de João”.
No entanto, nos primórdios da telefonia celular, ainda chegou a conversar muito com o violonista por telefone, “até o bicho esquentar no pé do ouvido”. João perguntava acerca de detalhes como a origem de “Barcarola do São Francisco” (1998), ao que Geraldo respondia tímido: “‘Olha, tudo que eu fiz foi ouvindo você. E, particularmente, ouvindo o Rio São Francisco’. Ele riu. Eu sempre achei que a Bossa Nova nasceu no Rio São Francisco”.
Ao longo das muitas noites de serenata para conquistar uma namorada aos 12 anos de idade, colocava no repertório os vozeirões da época, como Nelson Gonçalves, e terminava a investida com canções da Bossa Nova, um gênero que traduz bem o intimismo geraldiano na música.
Depois deu-se à absorção do Nordeste em sua obra. Quando foi para o Rio de Janeiro, começou a prestar mais atenção em Luiz Gonzaga e em Jackson do Pandeiro. “Eram músicas que faziam parte da minha vida, mas eu não dava tanta importância, até chegar aqui”, reconhece.
Adorava os cantos folclóricos e religiosos da região, os cantos de trabalhadores, das casas de farinha, mas também soube se abrir às influências do mundo. Encantava-se com as trilhas de Hollywood, com as músicas de Bob Marley, dos Beatles, além de apreciar o jazz de Thelonious Monk e as eruditas de Bach, Tchaikovsky, Debussy e Ravel.
Anos de chumbo
Foram muitos desafios. Ao chegar as Rio, Geraldo começou a acreditar no sonho de ser compositor, perseguindo o objetivo com mais consistência e segurança. Só essa tomada de decisão já era, por si só, um desafio, mas havia outras pedras no caminho.
“Já comecei no desafio de ter começado minha carreira numa época de um regime totalmente autoritário, que era a Ditadura. Eles sempre achavam que a cultura era de comunismo. A dimensão sempre era essa. É tanto que, naquele tempo, tudo que a gente fazia ia para a censura. A gente tinha que fazer pensando em ser aprovado pela censura”, rememora.
Detido por 41 dias pelos militares, Geraldo afastou-se por um tempo da música, retornando por incentivo de Alceu Valença, a quem foi apresentado em um dia branco de ideias. Na manhã seguinte, depois do café, os dois já estavam compondo “Talismã” (1972).
Preso pela segunda vez, ocasião em que foi torturado por dois militares, refletiu profundamente sobre os rumos de sua vida e decidiu, com plena convicção, que seu caminho pertencia à música. “Eu os perdoo, só não quero que volte esse tipo de regime nunca mais”.
Em paz
Com músicas que atravessam décadas, construindo a trilha sonora de gerações, Geraldo atesta ser muito difícil gravar canções novas, dado que o público sempre deseja ouvir as canções que marcaram a história de suas vidas. Mesmo assim, o músico gravou, no ano passado, “Estou em paz”, numa demonstração clara de sua paixão pela composição.
O sonho mais recente de Geraldo é lançar, ainda neste ano, um novo álbum, com composições inéditas. “Penso em fazer um álbum duplo; um com arranjos, orquestrações, e o outro com voz e violão”.
O Grande Encontro, show que revive os sucessos da série de álbuns homônima em que Geraldo toca com Elba, Alceu e Zé Ramalho, é um show que continua sendo realizado há sete anos — com a participação dos parceiros, exceto Zé Ramalho. Grato pela vida, Geraldo lançará mais uma canção no período do Carnaval, na qual enaltece o dom de existir. E arremata: “Não é oitenta, é ‘oitentação’. Hoje eu tenho uma gratidão muito grande à vida, da música ter me escolhido, pois foi ela que me escolheu”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de fevereiro de 2025.