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Os voos de Chico Pereira

publicado: 26/12/2025 09h53, última modificação: 26/12/2025 09h53
Artista nos deixou na véspera de Natal, aos 81 anos, mas o seu legado é de um verdadeiro guardião da memória cultural da Paraíba
2024.12.03 Chico Pereira Retratos © Leonardo Ariel (11).JPG

Além das artes, o campinense foi um grande gestor, sendo sua última condução a do Museu de História da Paraíba, em João Pessoa | Fotos: Leonardo Ariel

por Esmejoano Lincol*

Na mensagem que circulou, ontem (24), por grupos de WhatsApp, Flora Agra anunciou o falecimento do pai, o artista visual Chico Pereira, da forma mais poética possível: “Como uma linda andorinha que voa livre em pleno Natal, painho segue seu voo para a liberdade”. O céu foi paisagem de muitas de suas obras, dentre elas, o painel Tropicália, fixado nas paredes da Faculdade de Administração da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande, que eternizou a ida do homem à Lua. Foi mirando o espaço infinito que Chico constituiu, na terra, um legado importante, materializado na produção incontável de quadros, no ensino da arte e na gestão de equipamentos públicos, a exemplo do Museu de História da Paraíba, em João Pessoa.

Chico foi velado durante as últimas horas na sede da Academia Paraibana de Letras (APL), na capital. Hoje, o corpo seguirá para Campina Grande, onde receberá novas homenagens a partir das 13h, no Cemitério Parque da Paz (bairro do Velame); por fim, será sepultado no mesmo local, às 17h. Munido de técnicas diversas e pautado por temáticas ainda mais plurais — desde a paixão pela música às angústias provocadas pela pandemia —, o artista ultrapassou os limites de sua produção autoral, estendendo o seu ofício ao desenvolvimento e à regência de espaços para difusão e salvaguarda de acervos locais — um deles, o Núcleo de Arte Contemporânea, da Universidade Federal da Paraíba (NAC-UFPB). 

Um dos pais da arte pública, Chico tem painéis de azulejos instalados na sede do Senai | Foto: Reprodução/Instagram

Ao completar oito décadas de vida — mais de seis delas dedicadas às artes —, Chico foi capa do suplemento literário Correio das Artes, em dezembro do ano passado. Na matéria escrita pela repórter Alexsandra Tavares, o artista recordou a figura do pai, um comunista que pretendia um futuro como operário para o então menino, apaixonado por histórias em quadrinhos. Raul Córdula, também campinense, sinalizou nessa reportagem a influência que seu amigo, já adulto, teve sobre os universitários paraibanos. “Também sobre jovens artistas de João Pessoa e de Campina Grande. Ele tem muitas características, mas seguramente a sua generosidade é a mais importante. Um artista lúcido e trabalhador”, adjetivou o veterano.

Em nota divulgada ontem, o governador João Azevêdo lamentou a passagem de Chico Pereira, destacando o seu trabalho na condução do Museu de História da Paraíba, inaugurado no mês de outubro. Como diretor desse equipamento público, o campinense atuou desde a proposta à estruturação dos espaços; João também condoeu-se pelo fato de Chico ter se ausentado da inauguração deste que foi o seu último grande projeto, devido ao seu estado de saúde. A nota discorreu, a propósito, sobre a trajetória do artista na gestão de outras pastas e espaços importantes para o segmento: foi, ainda, vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura da Paraíba e pró-reitor adjunto de Assuntos Comunitários (Prac) da UFPB.

O presidente da Fundação Casa de José Américo (FCJA), Fernando Moura, declarou que a herança cultural deixada pelo amigo Chico Pereira só será conhecida de fato na posteridade, por meio da permanência de muitos de seus feitos. Ainda que Chico não tivesse formação específica na área, a experiência com museus, acumulada na prática, foi suficiente para ele ser alçado ao posto de especialista. “Ele participou da implantação direta ou da concepção de diversos equipamentos como esses na Paraíba. Tive o privilégio de trabalhar com ele no Museu dos Três Pandeiros, em Campina Grande; no Museu da Cidade de João Pessoa, que fica na Praça da Independência; e no Museu da Polícia Militar, também na capital”, citou.

Severino Ramalho Leite, presidente da APL, destacou a presença de Chico como ocupante da cadeira número 15 da instituição, asseverando que a sua atuação não se restringia apenas às artes plásticas. Como pesquisador, ele publicou livros que remontavam à história da cultura na Paraíba e a alguns de seus expoentes, como Francisco de Sales Gaudêncio (numa obra publicada em 2010, organizada em parceria com a também imortal Ângela Bezerra de Castro). “Mesmo quando ele deixou de ser membro da diretoria, ainda participava das reuniões, com boas ideias. E Chico era ainda o nosso representante no conselho do Instituto de Patrimônio Histórico e Geográfico da Paraíba (Iphaep)”, pontuou.

Um de seus painéis de azulejos instalados no Parque de Bodocongó | Foto: Arquivo da família

Rui Leitão, diretor de rádio e TV da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC) e confrade de Chico na APL, assinalou que o legado do colega estende-se a diversos segmentos — sua perda, enluta, portanto, toda a comunidade paraibana. “Sua atuação foi marcada pela dedicação, pelo diálogo respeitoso e pelo amor às causas do conhecimento e da cidadania”, clamou Rui, em nota. A Academia Paraibana de Imprensa (API) também compartilhou um dado relacionado à sua trajetória como docente: Chico Pereira foi sócio fundador da Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba (AdufPB). “Um defensor incansável da educação pública e da universidade como espaço de pensamento crítico” alegaram em comunicado.

Menos protocolar, Flávio Tavares foi taxativo: “Eu achava que Chico Pereira nunca iria morrer”. Ao relembrar tudo o que viveu com Chico desde os anos 1960, dentro e fora das mostras de arte, Flávio recorre à proximidade que mantinha com ele para assinalar fatos sobre o seu jeito de ser, que apenas os mais chegados conheciam. “Na hora que precisasse de alguma coisa, você já sabia de antemão que contava com Chico. Existe essa mística de que o artista é egoísta, e isso não passava nem de longe pela cabeça dele. Nem pela alma. Ele tinha um coração enorme. Inclusive, teve uma grande exposição somente com imagens de coração. A série representa muito bem essa história na sua plasticidade”, analisou.

Perpetuamente influenciado pela vanguarda de Chico, Dyógenes Chaves atesta que ele e Raul Córdula são os pais da arte pública. Por conseguinte, muitas de suas criações carregam a história de sua cidade natal, como os painéis de azulejos instalados na sede do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e no Parque de Bodocongó, ambos na Rainha da Borborema. “Esse último deve ter uns 30 m. Ele foi, ainda, um dos pioneiros do grafite no Brasil, com o Tropicália. E no Centro de Convenções de Campina Grande, inaugurado há pouco tempo, há uma intervenção dele na fachada, em ferro, feita com andorinhas. Por isso que a família está dizendo ‘que ele voou’, feito as andorinhas dele. Foi sua última obra”, resumiu. 

Centro de Convenções de CG | Foto: Arquivo da família

Dyógenes compartilhou com a reportagem um artigo do jornalista e conterrâneo de Chico, Machado Bittencourt, publicado em 1967, no extinto impresso Correio da Paraíba. O texto apresentava os costumes que Chico Pereira levou anos a fio, como trabalhar nas telas com os pés descalços, e divulgava fato contemporâneo à publicação: a seleção de obras do campinense para a Bienal de Artes Plásticas da Bahia. “Naquele dia, o jovem artista esqueceu todas as suas tendências socialistas e bancou um legítimo burguês de rua larga: fez uma festa para os seus amigos, bebeu e falou, como sempre, dos bilhões de dólares que ganhará algum dia, com a venda dos seus trabalhos gráficos e seus poemas”, disse Machado, sobre o perfilado.

O repórter que redige esta matéria também conversou com Chico Pereira, em uma matéria publicada em 22 de dezembro de 2024, dia de seu aniversário de seus 80 anos. O artista revelou para A União que, apesar do corpo idoso, o espírito permanecia juvenil. Ele assinalou, ainda, que, mesmo diante da trajetória política aguerrida, sobretudo na época da Ditadura, percebeu que poderia lutar em outras frentes: “Certo estava Oscar Niemeyer, quando dizia ‘A vida é sopro’. Cada um vem, faz a sua parte e vai embora. Nessa altura da vida, aos 80, eu me afasto cada vez mais das questões ideológicas como salvação da humanidade e me aproximo da tentativa de uma redenção particular, por meio da arte”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de dezembro de 2025.