“Cajazeiras te aplaude”; “Expressão da arte cajazeirense”. Foi com cartazes assim que os conterrâneos de Marcélia Cartaxo recepcionaram a atriz quando de sua volta da Alemanha, em 1985, com o prêmio no Festival de Berlim na mala: ela tinha dado vida à trágica Macabéa, no filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral. Quatro décadas depois, A União conversou com a artista no meio de outro regresso à terra natal — na manhã de ontem, ela rumava à Paraíba depois de ter recebido o Troféu Oscarito, na 53a edição do Festival de Gramado, no Rio Grande do Sul, na última terça-feira (19). Na expectativa da chegada em João Pessoa, a intérprete lembrou passagens pelo evento e celebrou o seu reconhecimento na mostra.
Marcélia recebeu o Oscarito das mãos da colega Isabel Fillardis, apresentadora e jurada do segmento de longas-metragens do festival. Emocionada, a paraibana agradeceu a honraria pelos 40 anos de carreira profissional, contados a partir de sua estréia, no filme que adaptava o livro clássico de Clarice Lispector.
O começo foi anterior, na infância, em peças amadoras. “Com muita resistência, atravessando todas as diversidades dentro da minha família, dentro do meu trabalho, na convivência com muitos artistas e muitas pessoas. Suzana acreditou em mim quando muitas pessoas diziam ‘Ela não é atriz, ela nunca fez um filme’”, disse, no palco. Antes, à tarde, Marcélia deixou as marcas de suas mãos na Calçada da Fama em Gramado.
Além deste prêmio concedido pelo conjunto da obra, Marcélia já conquistou outros dois troféus de atuação em Gramado. O primeiro, em 2019, graças ao papel da divertida e rabugenta Pacarrete, no longa-metragem de mesmo nome, dirigido pelo cearense Allan Deberton. Contracenou, na ocasião, com as amigas paraibanas Zezita Matos e Soia Lira — esta última, também venceu o prêmio de coadjuvante.
Três anos mais tarde, foi a vez do reconhecimento por A Mãe, do realizador gaúcho Cristiano Burlan (também vencedor em 2022): deu vida a Maria, uma mãe que peregrina por regiões periféricas de São Paulo, em busca do paradeiro de seu filho, desaparecido após uma abordagem policial.
Burlan assevera que quando o projeto estava pronto para ser filmado, vislumbrou em Marcélia a artista que melhor representaria o tipo que escreveu a quatro mãos, com a também roteirista Ana Carolina Marinho. O convite para integrar o longa, direcionado à paraibana, veio acompanhado da admiração que o diretor tem por Marcélia e pela certeza do êxito no trabalho.
“Seu rosto revela uma paisagem complexa que sempre me inspirou na construção da personagem. Ela ser ou não ser mãe na vida real nunca foi uma questão. Para a construção da personagem, conversamos muito, ela teve contato com as Mães de Maio [coletivo paulista que milita por justiça] e contracenou com Débora Maria, uma das lideranças do movimento”, aponta.
Expandindo para o mundo
Na manhã de ontem, Marcélia relembrou com orgulho suas passagens anteriores por Gramado, ocasião em que sentiu de perto o carinho dos colegas. Sobre Pacarrete, ela relata o depoimento de um jornalista que cobria o festival há quase duas décadas e que nunca, dentro da sua experiência, havia sentido uma recepção tão calorosa a um filme na mostra.
“E, realmente, quando eu andava na rua, era gente jovem, casais mais maduros, pessoas mais velhas, lojistas... todos vinham me abraçar. Era o pessoal que votou e que me reconhecia na rua. O filme ganhou oito prêmios, incluindo o júri popular. É algo maravilhoso, inesquecível. E histórico. Fiquei muito agradecida com tudo isso”, declara.
O Troféu Oscarito faz parte da premiação em Gramado, desde 1990. A reverência tem, no título, o nome do ator espanhol radicado no Brasil, sucesso das comédias da Atlântida, produtora cinematográfica. Ao olhar para o começo da carreira, Marcélia confidencia que jamais pensou que pudesse ser legitimada, anos depois, como uma das maiores atrizes do país.
“Os projetos que eu agarrei foram também sendo abraçados, e cada vez mais fui amadurecendo esse caminho. Cheguei aqui, aos 40 anos de carreira, com muitas mudanças, porque esse avanço tecnológico ajudou a revitalizar muitas coisas, principalmente A Hora da Estrela, que é a minha maior memória [sobre a restauração recente do longa]”, resume.
Mencionando também a recepção calorosa em Cajazeiras, em 1985, Marcélia assevera que teve muito apoio local, na época. Ela considera positiva a reabertura de uma sala de cinema no município; a ação, segundo a artista, ajuda a formar novos públicos espectadores, considerando o consumo majoritariamente digital hoje em dia.
“Esse contato mesmo com a cultura, com o audiovisual, é muito importante. A gente, agora, pode trazer uma programação mais atualizada para os cajazeirenses e para as pessoas que vão visitar a nossa terra, como os estudantes que chegam das ‘vizinhanças’ do Ceará, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco. A gente se une nesse universo do cinema”, declara.
Mirando o futuro da carreira, Marcélia Cartaxo diz que ainda há muito a fazer. Enveredando pelo caminho da direção (como nos curtas-metragens Tempo de Ira e Redemunho), ela sonha, agora, com a realização de um longa. Mas, considerando aquilo que colheu nessas quatro décadas, ela reitera o sentimento de dever cumprido em relação à arte.
“Sinto que minha carreira é respeitada e que está, de certa forma, concretizada. Tenho alguns filmes que vão eternizar, não só na minha cidade local, mas no Brasil inteiro, e no mundo, que já atravessei algumas vezes. Já levei filmes para Pequim, para Berlim, para Los Angeles. A gente quer é se expandir, mostrando a nossa arte enquanto brasileira”, conclui.
Atuação potente
Realizadores que trabalharam com Marcélia confirmam sua importância para o cinema do país. Cristiano Burlan, de A Mãe, diz que é impossível pensar na filmografia brasileira dos anos 1980 sem pensar no trabalho seminal composto pela paraibana para A Hora da Estrela, na atuação que adjetiva como “potente”:
“Ela é o cinema brasileiro vivo, assim como Helena Ignez e outras grandes artistas do nosso cinema. Foi uma experiência única ter trabalhado com ela e eu mesmo aprendi muito. Trocamos muitas coisas durante o set e, com certeza, espero trabalhar em outros filmes com ela”.
Camilo Cavalcanti dirigiu Marcélia no longa A História da Eternidade, de 2015. As dores da personagem Querência foram, segundo o pernambucano, traduzidas com delicadeza e complexidade, marcas da variedades de tipos que ela interpretou dentro e fora da sétima arte:
“Ela é uma força da natureza que se reinventa a cada novo trabalho, sempre em busca de ir fundo nas suas emoções. Suas facetas traduzem a alma do Brasil real, para além das profundezas mitológicas nordestinas. A sua integridade artística representa o que a arte brasileira tem de melhor, uma honestidade reveladora da nossa alma”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de agosto de 2025.