por Joel Cavalcanti*
Hoje faz um ano da morte do pianista e maestro mineiro Nelson Freire, gênio da música conhecido por seu virtuosismo e sensibilidade poética. Considerado um dos cinco maiores intérpretes de Beethoven, Chopin e Mozart, ele nutriu durante os últimos sete anos de vida uma forte amizade com a pianista pessoense Juliana Steinbach. Ela foi fundamental para a recém-lançada biografia Nelson Freire - Le Secret Du Piano (Fugue, 224 páginas), publicada no último mês na França, onde ela é radicada. Em passagem por João Pessoa antes de realizar uma série de concertos no Sudeste, Juliana sente a responsabilidade de manter vivo um certo ideal artístico de seu mestre. “Essa é uma missão de cada um de nós músicos brasileiros em nossa prática”, afirma ela.
O cenário da entrevista foi diante da arquitetura em barroco-rococó da Igreja de São Francisco, patrimônio histórico perfeito para receber espetáculos de música erudita, e onde Juliana Steinbach já teve a oportunidade de se apresentar algumas vezes na capital. Tendo saído de João Pessoa ainda criança, aos dois anos de idade, indo morar na França com a sua mãe, ela contribui com a preservação da memória do amigo e tutor. “Eu acredito que Nelson Freire não precisa de nenhum embaixador. Nós somos muito honrados de ter conhecido e nos aproximado desse fenômeno da vida musical brasileira e mundial, mas a memória de Nelson Freire é imortal e não precisa de ninguém para defendê-la”, considera ela, enquanto carrega consigo a biografia que ainda não tem versão em português, mas já está em negociações com editoras brasileiras para que ele seja publicado por aqui.
A obra é escrita pelo jornalista especializado em música erudita em Paris, Olivier Bellamy. Ele acompanhou de perto a carreira de Nelson Freire e desenvolveu uma obra que provavelmente não seja a definitiva sobre o brasileiro e que não cobre todos os aspectos da vida e obra do pianista, mas cria com sensibilidade um retrato pessoal e fiel à personalidade e a história dele. Bellamy se apoia em farto material baseado na própria convivência com Nelson Freire, complementando a pesquisa através de entrevistas com personagens que acompanharam a trajetória do pianista, desde a infância. Foi durante essa fase que Juliana deu a maior contribuição para a biografia, colocando o jornalista em contato direto com a família de Nelson, em Minas Gerais.
“Nós fizemos várias horas de vídeo conferência em que eu traduzia e agia como uma interlocutora entre eles. Oliver também acompanhou a presença de Nelson Freire no meu festival na Borgonha, centro-leste da França, em 2017 e 2019. Então, ele também tinha essa experiência sobre a nossa história de amizade e de mentoria”, explica a pessoense.
As passagens que mais surpreenderam Juliana Steinbach com a obra são as que revelam detalhes do episódio dramático da morte dos pais de Freire e uma série de conexões que o escritor faz a partir de trágicas coincidências a partir desse caso. “O Nelson não falava muito facilmente sobre isso. Ele perdeu os pais em circunstâncias terríveis quando eles acompanhavam o filho em uma viagem de ônibus entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde ele realizou um concerto com a presença de toda a família”, lembra ela.
Era início de manhã de quarta-feira de 13 de setembro de 1967. Nelson Freire, então com 22 anos e já bastante conhecido, retornava para casa com seus pais, José Freire da Silva e Augusta Pinto Freire, ambos com 59 anos. No ônibus, havia 18 passageiros e apenas quatro sobreviveram. O caso causou forte comoção pública por também levar a óbito a atriz e apresentadora Zelinha, estrela da televisão mineira na época. O acidente fatal aconteceu no Viaduto das Almas, que recebeu esse nome devido a sucessivos acidentes acontecidos no mesmo local. Nove dias após o acidente, o depoimento de Nelson Freire serviu para inocentar o motorista. Segundo ele, o ônibus havia ultrapassado outro ônibus, na entrada do viaduto, quando o motorista estaria tentando controlar a direção e evitar o choque.
“Logo antes desse episódio, a mãe de Nelson disse para o filho ir para outra poltrona, na parte de trás do ônibus. Ele mudou de lugar e foi assim que foi salvo”, diz Steinbach. Segundo notícias da época, onze poltronas não tinham sido ocupadas. “Esse não foi apenas um episódio dramático da vida dele, mas isso deu sentido ao destino completo do músico. Primeiro, porque acredito que Nelson sentiu uma espécie de ‘culpa do sobrevivente’ e ele também se vestiu de uma missão de merecer por estar vivo e de agradecer pelo sacrifício dos pais”, complementa a musicista, contribuindo para o entendimento que todo concerto de Nelson fosse como uma forma de retribuição para os seus pais.
No campo mais simbólico, Olivier Bellamy não deixa de relacionar a tragédia no Viaduto das Almas com a morte de Nelson depois de uma queda em casa no Dia de Todos os Santos. O maestro sofreu um acidente enquanto caminhava pela calçada da praia, no Rio de Janeiro, em outubro de 2019, e quebrou o ombro. Esse evento viria a ser decisivo na vida dele, que não conseguiu recuperar plenamente as suas capacidades pianísticas. “Quebrando esse ombro ele quebrou todas as possibilidades de tocar no nível que ele havia atingido. Para um artista como Nelson Freire, não poder mais se expressar e evoluir nesse ideal musical de altíssimo nível não fazia nenhum sentido. A vida dele era canalizada e concentrada na sua experiência artística”. A banalidade de uma queda o afastou do piano, instrumento que amava acima de tudo.
Xamãs da música
Para realizar o tributo fúnebre que não havia conseguido prestar no ano de sua morte, hoje Juliana Steinbach está em Boa Esperança, cidade natal de Nelson Freire, visitando o jazigo do amigo. Depois disso, ela segue para o Rio de Janeiro, na Sala Cecília Meireles, onde se apresenta com a Orquestra Petrobras Sinfônica, com regência de Fabio Mechetti, apresentando o ‘Concerto para piano em sol’, de Maurice Ravel. Um repertório tipicamente francês de um compositor tão importante para a Paraíba através de seu bolero.
De lá, Juliana aporta em Ilhabela (SP), local onde Nelson Freire quis apresentar Steinbach ao público brasileiro. Ela tocará com o violinista e regente Cláudio Lemos, considerado como um dos melhores do Brasil, inclusive por Nelson Freire. No repertório, peças do compositor húngaro Béla Bartók. Juliana faz ainda dois concertos com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, tocando mais uma vez o concerto de Ravel.
Durante essas homenagens, Juliana Steinbach seguirá um ritual codificado de conexão sentimental com Nelson Freire. No momento do bis, ela costuma tocar a peça ‘Melodia’, da ópera Orfeu e Eurídice, de Christoph Willibald Gluck e Giovanni Sgambati. Essa era uma tradição de Freire, tal qual fazia a pianista brasileira Guiomar Novaes, a quem ele sempre prestou tributos. Assim como Freire procurava se aproximar de seus pais enquanto tocava, Juliana Steinbach envia suas notas para ser conduzida ao tempo de convivência quando tocava a quatro mãos com Nelson Freire.
“Nós, intérpretes, somos como médiuns, como xamãs. Nós nos comunicamos através do tempo e do espaço. A partitura musical é um tesouro inerte até que a coloquemos novamente em vida. Temos esse papel um pouquinho espiritual de comunicação entre a alma, a intenção musical e o subconsciente exprimido nas notas do compositor”, finaliza a musicista.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 1 de novembro de 2022.