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Passeio pelas ruas de Alceu Valença

publicado: 21/06/2023 09h54, última modificação: 21/06/2023 09h54
Biografia ‘Pelas ruas que andei’ revela o percurso do pernambucano para se tornar um dos principais artistas do Brasil
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Foto: Leo Aversa
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Prestes a completar 77 anos enquanto percorre o país em longas turnês (inclusive passando pela Paraíba), Alceu Valença tem sua história contada de forma cronológica em uma edição robusta de quase 600 páginas e com riqueza de fotografias - Imagem: Cepe/Divulgação
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Assinado pelo carioca Julio Moura (foto), livro mostra histórias de vida e carreira de Alceu ao longo dos 50 anos de palco, teatro, cinema, picadeiro, tapume e meio de rua - Foto: Pércio Leandro/Divulgação
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Um dos momentos presentes na obra: Valença no Alto da Sé, em 1980 - Foto: Cafi/Divulgação
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Alceu no filme ‘A noite do espantalho’ - Foto: Memória Viva/Divulgação
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Julio Moura por Pércio Leandro.jpeg
Alceu Valença no Alto da Sé, em 1980 Crédito Cafi.jpg
Alceu no filme A noite do espantalho Crédito Tania Quaresma Sérgio Ricardo Memória Viva.jpeg

por Joel Cavalcanti*

Atravessando um riacho ainda criança, Alceu percebeu que as rodas do caminhão em que estava deixava para trás rastros que se desfaziam rapidamente pela estrada. “A ventania e o tempo não têm compaixão”, canta ele em ‘Porto da saudade’ sobre essa imagem que emprestou a sua música a característica de ser itinerante. “Onde é que tu vai, senhora estrada? Companheira fiel do meu destino”, diria ele também em ‘Senhora estrada’, que o define como um poeta andarilho. Prestes a completar 77 anos enquanto percorre o país em longas turnês, Alceu Valença é visto quase todos os dias de folga caminhando no calçadão de Ipanema e Leblon. Uma carreira e uma trajetória de vida que se transformaram na biografia Pelas ruas que andei (Cepe Editora, 592 páginas, R$ 70), do jornalista Julio Moura.

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Prestes a completar 77 anos enquanto percorre o país em longas turnês (inclusive passando pela Paraíba), Alceu Valença tem sua história contada de forma cronológica em uma edição robusta de quase 600 páginas e com riqueza de fotografias - Imagem: Cepe/Divulgação

Para produzir o livro, Alceu andou pisando pelas ruas do passado, criando calo em seu pé caminhador, precisando recordar de fatos que o incomodam e causam um mal estar. “Por exemplo, quando ele teve um infarto. Alceu não gosta de revisitar aquilo. Teve também o momento da política, em 1973, durante a ditadura militar, em que ele teve muitos amigos presos e torturados no Rio de Janeiro. É doloroso para ele revisitar esses momentos espinhosos”, cita o biógrafo, que é assessor de Alceu Valença há quase 15 anos. Isso deu a ele uma posição privilegiada devido à aproximação que consegue com o artista, mas também cria um conflito devido à relação de trabalho. “Uma vez, eu fiz um workshop com Ruy Castro, e ele falou que se você conviveu com o seu biografado isso não é uma biografia, é um livro de memórias. Assimilei a lição, mas em absoluto tentei fazer um livro de memórias. Pelo contrário, a assertiva de Ruy Castro me inspirou a tentar buscar um distanciamento”.

Pelas ruas que andei teve início em 2019 e foi produzido durante a pandemia, se valendo mais de pesquisas em jornais, revistas, livros e outras publicações, do que em entrevistas presenciais com pessoas que passaram pelas trilhas do músico pernambucano. Isso dá ao livro a particularidade de servir como uma reverência ao jornalismo cultural a partir da análise do diálogo do biografado com a imprensa. “A imprensa tem um respeito e quase uma veneração por ele, eu percebo. Alceu pode se sentir conceitualmente incompreendido aqui e ali durante a carreira, mas ele sempre foi bem recebido pela imprensa desde Molhado de Suor, disco de 1974 com Geraldo Azevedo. Desde o começo ele deu grandes entrevistas, com discursos contundentes e de forma bem categórica”, defende Moura.

Através desses textos fica evidente que Alceu entende muito bem a origem de suas influências e inspirações, falando de forma muito aberta sobre si mesmo. Suas canções são bastante autorreferentes e muito autobiográficas. Ele não tem dificuldades em descrever o valor do próprio trabalho, sem falsas modéstias. “A opinião de Alceu sobre o próprio trabalho está consolidada há muito tempo. Embora ele diga em ‘Agalopado’ que é ‘o porta-voz da incoerência’, o discurso dele é muito coerente”, afirma Moura, que já havia escrito, em 2015, Por trás da luneta, um diário de filmagens sobre o filme A luneta do tempo, dirigido por Alceu. Com a biografia concluída, no final do ano passado, Julio Moura mostrou o livro a Alceu, que contestou algumas passagens. A inserção dele no contexto dos movimentos psicodelia nos anos 1970 e a consideração do álbum Vivo! (1976) como sendo do rock foram alguns dos alvos das reclamações. Outro exemplo é o apoio que Alceu deu, em 1990, ao candidato ao governo de Pernambuco, Joaquim Francisco, que disputava a eleição contra Miguel Arraes, nome defendido pela esquerda.

Mas o que marca o livro é mesmo o percurso de Alceu ao longo dos 50 anos de palco, teatro, cinema, picadeiro, tapume e meio de rua. Percurso que lhe fez cantor, compositor, instrumentista, poeta, diretor de cinema, ator e advogado. O autor de hits como ‘La belle de jour’, ‘Tropicana’, ‘Bicho Maluco Beleza’, ‘Espelho cristalino’ e ‘Coração bobo’ tem sua história contada de forma cronológica e com uma edição robusta, com riqueza de fotografias. A obra também dá espaço para se debruçar musicalmente no repertório de Alceu, que sempre foi de coco, maracatu, forró e frevo, misturando tudo com guitarra e bateria, em um estilo de som pré-manguebeat. “Com Jackson, aprendi a dividir melhor, a cantar com mais ritmo, a dividir as palavras, as inflexões. Comecei a cantar mais forró, porque antigamente eu pegava as minhas músicas e botava muito rock dentro. Claro que era música de raiz, totalmente nordestina, mas os ataques e a bateria eram pesados demais. A partir dele, veio o suingue da minha música”, reflete Alceu na publicação.

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Foto: Leo Aversa

As ruas pelas quais Alceu andou têm a pedra fundamental instalada na fazenda Riachão, em São Bento do Una, Pernambuco. Lá, o canto dos pássaros e os aboios lhe deram as primeiras informações sonoras. Só depois viria o violão e a viola de seu avô, que brincava de fazer repentes, e os emboladores e cordelistas da feira livre. Foi quando tomou destino para Garanhuns, e de lá para o Recife, onde ouvia através do rádio os boleros, os tangos, as valsas e toda sorte de ritmos internacionais. Na Rua dos Palmares, no bairro da Boa Vista, era vizinho do poeta Carlos Pena Filho e via passar de sua porta os blocos de maracatu, frevo e caboclinho. Foi de lá para o Rio de Janeiro, para os EUA, morando também em Paris. Nessa jornada, o que ele nunca deixou pelo caminho foi a sua vontade de ser livre e de expressar sua paixão pelas coisas brasileiras.

O lançamento da biografia ocorre no próximo dia 27, no Recife. Dois dias antes, no próximo domingo, Alceu será a atração principal do São João em Campina Grande. Uma noite de autógrafos com a presença do músico e de seu biógrafo, porém, está sendo considerada apenas para o dia 17 de agosto, quando ele apresenta no Teatro A Pedra do Reino, em João Pessoa, o concerto Valencianas, com a Orquestra Ouro Preto. Pelas ruas que andei ajuda a dar a Alceu o tratamento devido ao artista fundamental para descrever a alma dos brasileiros. Uma forma de eternizar os rastros que ele deixou na cultura brasileira, apesar de ele saber desde criança que se “você quer parar o tempo, o tempo não tem parada”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 21 de junho de 2023.