por Joel Cavalcanti*
“Eu tenho muita dificuldade em explicar sobre o que é o filme”, começa a entrevista a diretora de Desterro, Maria Clara Escobar, sobre a produção que estreia em circuito nacional hoje, inclusive em João Pessoa, com sessão no Cine Bangüê, às 20h30. O desafio de desvendar os sentidos do filme se justifica pelos limites que a objetividade impõe para dar conta de uma história que acompanha um casal branco de classe média vivendo em uma estrutura matrimonial em ruínas e a personagem feminina, Laura (Carla Kinzo), resolve sair daquele espaço e fazer uma viagem na qual ela vai encontrar diversas outras mulheres e homens que a farão repensar sobre suas próprias possibilidades de existência.
Com precisão, o movimento que melhor define o filme é a busca e a descoberta de personagens que querem se relacionar entre elas, com o mundo e com as pessoas que elas vão encontrando. “Meu desejo de fazer esse filme é certamente de compartilhar uma sensação de estar no mundo, sendo essa mulher específica, nesse Brasil, e de colocar em diálogo com outras mulheres, que são essas atrizes e essa equipe que participou desse filme comigo”, conta a diretora e roteirista carioca que estreia em longas de ficção, mais de dois anos depois de Desterro ter sido lançado no Festival de Roterdã, na Holanda. Desde então, o longa-metragem vem lentamente sendo apresentado ao público, passando depois pelo Festival de Viena e no Festival do Rio de Janeiro. Apesar desse incomum tempo transcorrido e com uma pandemia no meio, Desterro demonstra que ainda está em diálogo com os acontecimentos atuais no país.
Com locações em São Paulo e no Sul do Brasil, chegando até a fronteira com a Argentina, a maior trajetória percorrida pelo filme é interna e questionadora das funções que os indivíduos exercem na sociedade e nas instituições, sejam elas o casamento, as afetivas e as políticas localizadas em um sentimento de classe. É como um itinerário de exílio voluntário do lugar onde não sente pertencer. E com o epicentro na figura feminina. “Essa é uma das formas de pensar o que é ser mulher nesse momento. Existem muitas, mas eu só sei fazer a partir de minha própria experiência. O que tem de autobiográfico é uma sensação atmosférica de estar no mundo, mais do que os fatos em si”, conta Escobar, que já havia levado às telas uma história familiar no premiado documentário Os dias com ele (2013), em que entrevista o próprio pai, um intelectual brasileiro, preso e torturado durante a ditadura militar.
Cinéfila e uma ex-frequentadora assídua de videolocadoras, a contribuição de Maria Clara Escobar para o cinema veio através da escrita, desenvolvendo roteiros, fugindo inicialmente do trabalho de comandar um set de filmagens. “Eu não queria nem querer [ser diretora]. Gostava de ser roteirista”. Foi exatamente o encantamento com o trabalho coletivo com o elenco que a incentivou a mudar de ideia. “Senti muito prazer e entendi naquele momento que eu iria querer dirigir filmes. A relação de querer dirigir filmes vem do desejo de trabalhar com atores”. Essa descoberta foi a responsável pela transição do documentário para a ficção realizada em Desterro. “Eu vou entendendo que o cinema que eu faço é um pouco o documentário da ficção. Documentar o gesto de fazer ficção. A gente mistura um pouco tudo isso. Ou tenta”, revela a realizadora carioca. Ao longo do percurso da protagonista, outras mulheres chegam a falar diretamente para a câmera sobre suas experiências pessoais, em rápidos monólogos que misturam realidade e ficção.
Também poeta e já tendo publicado, em 2019, Medo, Medo, Medo, a diretora usa referências poéticas em todas as cenas de Desterro. Não apenas poesias, mas também músicas, filmes e trechos de livros em seu processo criativo coletivo. Não há uso direto do texto poético nos diálogos dos personagens, mas eles são fontes de inspiração na construção de uma sensação comum.
“Meu objetivo como diretora deste filme era dividir e tentar construir uma certa gramática em comum com as pessoas que iam estar comigo, tanto elenco quanto a equipe, para que cada um pudesse falar de seu jeito”. Um exemplo disso está na primeira cena do longa, na qual uma grua mostra a fachada de uma casa com os personagens entrando no imóvel. É uma alusão ao texto do escritor chileno Roberto Bolaño chamado Fachada. Em uma tradução livre, o autor escreve: “Não adianta cantar com sentimento. Minha querida, onde quer que você esteja: não há nada a fazer, não há necessidade do gesto que nunca veio. ‘Era apenas uma fachada’. O menino caminha em direção à casa”. Para Maria Clara, essa primeira imagem ajuda a estabelecer no filme uma ideia de se olhar para além daquela fachada, ou para a vida além do cotidiano, ou para o filme além do que está na imagem.Sessão especial na PB
Além da sessão de hoje, Desterro possui mais duas exibições confirmadas no mês de setembro no Cine Bangüê. As demais serão no domingo (25), às 18h, e na quarta-feira (28), às 20h30. Os ingressos custam R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
O filme permanecerá em cartaz durante o mês de outubro, quando é esperado para o dia 5, às 19h, a presença da diretora Maria Clara Escobar para uma sessão especial seguida de um debate com o público.
A presença da realizadora em terras paraibanas não é algo inédito, já que ela tem um projeto de um novo filme com gravações realizadas no estado. Trata-se de um documentário que ela está produzindo, mas ainda em suas fases iniciais de pesquisa. Sem poder revelar muito sobre o enredo, Escobar adianta que uma das entrevistadas é uma paraibana que mora por aqui. O filme também deverá misturar ficção e documentário, e vai tratar sobre a relação da grande mídia no julgamento público de mulheres.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 22 de setembro de 2022.