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Pelas anotações de Chico Science

publicado: 09/05/2023 12h29, última modificação: 09/05/2023 12h29
Irmã do músico que foi um dos principais representantes do ‘manguebeat’ fala sobre a iniciativa de digitalização do acervo escrito pelo artista
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Foto: Ciro Coelho/Estadão Conteúdo

por Joel Cavalcanti*

Chico Science tinha por hábito andar com cadernetas e fazer anotações que guardavam parte de seu cotidiano. Entre pequenos recados, números de telefones, haicais, letras de músicas e ideias sociais, uma pequena anotação atribuída ao escritor francês Marcel Proust chamou a atenção de sua irmã, Maria Goretti de França. Nele, lia-se: “O passado é o jantar de ontem, passou”. Um intrigante contraste sobre o artista lançado ao mundo com o álbum Da lama ao caos, que iniciava o antológico LP defendendo que “modernizar o passado é uma evolução musical”. Por 26 anos, ela carregou todos esses escritos que contam o passado do irmão e que agora estão disponibilizados ao público através do site Acervo Chico Science (acervochicoscience.com.br).

“Quando ele morreu, eu fiquei responsável pelas coisas dele, pelos objetos pessoais, porque a gente morava no mesmo apartamento. A gente foi organizando tudo isso e vendo o que poderia ser preservado como acervo. O que tinha de mais frágil nesse acervo eram os cadernos. Reuni todos eles e as folhas avulsas também. Com o tempo, foi nascendo a ideia de expor ou de criar um livro, mas não havia recurso, não havia tempo”, remonta Goretti de França. Para reunir todo o material, ela contou com de Louise França, filha de Chico, Sonaly Macedo, amiga do cantor, e da produtora Priscila Moreira para realizar o trabalho de tratamento do patrimônio cultural que durou nove anos.

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Exemplos das anotações realizadas por Chico Science (foto maior); material, na íntegra, será disponibilizado aos poucos: a cada três meses, a plataforma passará por atualização

O material na íntegra será disponibilizado aos poucos. A cada três meses a plataforma será atualizada com a publicação de outros sete blocos de notas. Até o momento, são sete cadernos, de um total de 27, e várias folhas avulsas através das quais é possível acompanhar sem uma ordem cronológica determinada o universo criativo assinado por Francisco, Chico, Chico Vulgo e, por fim, Chico Science, o cientista dos ritmos. “Cada contato mais aproximado com isso, era mais emoção, mais urgência para fazer as coisas. Os sentimentos são muitos e foram diversos, mas todos muito bons e cheios de muita responsabilidade com a preservação da memória”, conta Goretti.

Os manuscritos têm coisas simples como números de telefone do produtor musical Liminha e de Frejat, contabilidades indiscriminadas e lista de compras. Mas também conta com letras de músicas e descrição de arranjos ainda inéditos e que se abrem para possibilidades de serem reinterpretadas por outros artistas em novas composições.

Foram desses escritos avulsos e caóticos que Lenine gravou ‘Samba e leveza’, no álbum Labiata (2008), a partir da letra composta por Chico Science. “É interessante que, nos escritos, existem ideias que se repetem em cadernos de diferentes épocas. Às vezes, você pega fragmentos que podem ser juntados e formar uma composição inteira. Alguém que olhe, algum artista, pode achar inspiração para compor uma canção”, conta a irmã do músico, que destaca ainda outros trechos dos cadernos que contam com descrições detalhadas de para novas melodias. Mas o que se sobressai nesse mergulho na lama e no caos da cabeça de Chico Science é o aspecto afetivo de suas anotações.

“É legal ler esses cadernos com essa disponibilidade, com espontaneidade. Você vai olhando e vai se encantando. Tem coisas muito simples: uma lista de feira, um checklist que vai observando as tarefas realizadas e o cotidiano da pessoa. No meio dessas coisas, um estalo, uma inspiração de algo que o tocou”. Goretti de França chegou a se questionar algumas vezes se deveria expor o material que o irmão mantinha tão próximo de se. “Mas apenas com coisas mais íntimas, como cartas de amor que eram dirigidas a algumas pessoas. A gente se questionava sobre isso, mas nunca paramos o processo. O que era mais forte era a vontade de fazer, de preservar e entregar ao mundo. Mas são coisas que precisam ganhar o mundo. Acho que ele iria gostar, sim, de ter isso divulgado”.

Em Rio Doce, Olinda, Chico cresceu, estudou, “pegou caranguejo, conversou com urubu”. Em fevereiro de 1997, ele perdeu a vida em um trágico acidente de carro, exatamente no limite entre as cidades do Recife e de Olinda. De um lado o mangue, do outro o mar, o músico deixou um legado histórico que agora se espraia a fazer artes pelas antenas e pelos computadores, com o reflexo de sua mente na imensidão. “Chico era muito encantado com as coisas, muito curioso e tinha um olhar muito poético a tudo. Acho que o leitor, assim como fizemos, deve olhar tudo contemplando, sem buscar respostas. Às vezes, sem perguntar e sem buscar, a gente encontra. Se eu pudesse dar um conselho ao leitor, seria para ele olhar para tudo com um olhar contemplativo e despido para poder ir se encantando”, finaliza Goretti de França.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 9 de maio de 2023.