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Pelo microuniverso de uma guerra

publicado: 08/05/2023 16h52, última modificação: 09/05/2023 12h19
Chega ao Brasil ‘O voo do corvo’, premiada obra de um dos maiores quadrinistas do nosso tempo: Jean-Pierre Gibrat
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Tendo a França após o Dia D durante a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo, obra de Gibrat vai do alto dos telhados parisienses (acima) até os canais da cidade (abaixo) para esmiuçar a vida da protagonista em meio ao caos - Imagem: Jean-Pierre Gibrat/Divulgação
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por Audaci Junior*

Paris pode ter sido uma festa — como escreveu Hemingway no período entreguerras —, mas o que se instalava na capital da França em 1944 era uma tensão causada pela Resistência e a nação ocupada já há alguns anos (e com extrema “rapidez”, frustrando o julgamento do próprio Hitler, que a considerava a maior ameaça da Europa continental no Ocidente). Por temor ou por acharem que aquilo seria o “correto”, muitas eram as denúncias que partiam da própria população para a polícia francesa sobre as ações, esconderijos e transações envolvendo os rebeldes.

É nesse tópico que o quadrinista Jean-Pierre Gibrat começa O voo do corvo (Editora Pipoca e Nanquim, 140 páginas, R$ 109,90), uma de suas grandes obras como autor. Nessa altura, a ocupação alemã da França já estava com os seus dias contados. Porém, justo na estratégica e decisiva manhã de 6 de junho, a protagonista Jeanne, combatente da Resistência, é presa após uma denúncia anônima. Enquanto aguarda em uma cela francesa para ser entregue aos nazistas, ela conhece François, um cínico e jocoso ladrão que não toma partido na guerra, honrado entre suas regras e escrúpulos de ladrão a arte de sobreviver, mesmo sendo comumente freguês da polícia local.

No mesmo momento em que há os desembarques dos Aliados nas praias da Normandia, ao Norte da França, uma outra investida é colocada em prática para respeitar a máxima da “ocasião faz o ladrão”, deixando Jeanne e François livres após as sirenes alertando os bombardeios ecoarem pelas ruas. Contudo, a fuga será através dos telhados parisienses.

Acuados, eles discutem sobre seus ideais até planejar como o alto comando da Operação Overlord qual escotilha vão descer para se esconder das autoridades, uma investida que vai das ruas para os canais de Paris, em um barco de um dos amigos de François, no qual se encontram a esposa grávida e o jovem filho do barqueiro. Uma família que não faz perguntas e vive sempre brigando entre si, mas nunca de uma forma não amorosa.

No ramo dos quadrinhos desde os anos 1970, só foi na década de 1990 que Gibrat se tornou um “artista completo”, fazendo também seus próprios roteiros. Um dos seus fascínios é a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo para os dramas particulares de seus personagens. O seu primeiro álbum como roteirista e desenhista, Destino Adiado (lançado no Brasil pela mesma Pipoca e Nanquim, em 2020) foi o primeiro tiro de canhão para a sua consagração como quadrinista premiado.

A história também se passa na França ocupada, porém na visão de uma pequena vila, na qual um rapaz que desertou das filas do exército se esconde em uma propriedade abandonada para esperar o término da guerra — um “isolamento social” em que ele acompanha todo o cotidiano do vilarejo, tanto os conflitos cotidianos refletidos pelas tensões da ocupação, quanto a ansiedade de não consumar o seu amor por uma das habitantes do lugar.

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Apesar de ter o Dia D, que acentuou o desgaste dos alemães, como palco, O voo do corvo ainda é o Gibrat focando o microuniverso do conflito perante o macro. Não foi de uma hora para outra que a França foi “libertada” pelos norte-americanos e ingleses. Toda a apreensão com os protagonistas se materializa quando Jeanne descobre, ainda nos telhados, que sua irmã pode estar nas mãos dos nazistas. Além de se esconderem, eles vão ter que descobrir o paradeiro dela. O ápice da síntese do autor é quando o barco é designado (para não dizer “forçado”) a deslocar para uma operação alemã, colocando na embarcação um oficial nazista para escoltá-lo até seu destino.

Com a virtuose tanto nas pinceladas realistas de aquarela quanto nos detalhes históricos (vestimentas, arquitetura, paisagens etc.) nas páginas produzidas por Gibrat, a obra conquistou o Prêmio do Desenho (Prix du dessin, no original) do prestigiado Festival Internacional de Angoulême, em 2006, entre outros.

Título

Uma das curiosidades que pode passar despercebida pelo leitor é o próprio título do álbum. Afinal de contas, por que O voo do corvo?

Caindo nas graças populares para uma explicação, a presença do corvo é interpretada simbolicamente como um sinal de mau presságio ou mau agouro, além de morte, azar e outros elementos sombrios. Para a situação dos personagens e da época em que vivia o mundo (e mais especificamente a Europa), é uma comparação bem plausível.

Porém, outra explicação — mais especificamente centrada na ação de voar — pode-se encontrar nos estudos bíblicos: em meio à destruição causada pelo dilúvio, por conta da maldade infestada sob o mundo, Noé está à deriva com toda a criação em sua embarcação profetizada por Deus. Até que, “passados 40 dias, Noé abriu a janela que fizera na arca. Esperando que a terra já tivesse aparecido, Noé soltou um corvo, mas este ficou dando voltas” (Gênesis 8:6-7).

A ave foi a primeira escolhida por Noé para a missão de reconhecimento, antes de ele soltar a pomba, que traria um ramo novo de oliveira entre o bico, uma evidência de que as águas tinham diminuído sobre a terra. O motivo de ter feito isso não é explorado nas escrituras, mas pode-se deduzir (de forma superficial) que ele esperava que o animal não voltasse, caso encontrasse terra firme (e consequentemente cadáveres, já que o corvo é necrófago).

O voo do corvo perante a destruição do mundo causada pelo homem. Ou o arrasamento específico de vidas perante a grandiosidade de uma guerra, vista através do microscópio esmiuçador de Gibrat.

Matéria publicada originalmente na edição impressa de 7 de maio de 2023.