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Pelo protagonismo nativo na história

publicado: 28/02/2024 14h54, última modificação: 28/02/2024 14h54
Livro infantojuvenil traz histórias reais que colocam as etnias indígenas no centro da formação inicial da Paraíba
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Em ‘Muyrã-Ubi e Iratembé na origem da Paraíba’, a antropóloga pernambucana radicada no estado, Rita de Cássia Melo Santos, combate a idealização de um indígena genérico, mirando na mudança de mentalidade da população de crianças e adolescentes - Fotos: Edson Matos
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por Joel Cavalcanti*

Existe uma contradição enfrentada pelas populações indígenas no Brasil. Se por um lado há um reconhecimento histórico que os indígenas foram importantes para a construção do país, de outro persiste uma recusa em reconhecer os direitos contemporâneos dessa população na sociedade. Combater a idealização de um indígena genérico é um dos caminhos de dissolução desse contrassenso e é o que propõe o livro infantojuvenil Muyrã-Ubi e Iratembé na origem da Paraíba (Editora Novos Ases, 96 páginas, R$ 49,90).

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O livro da antropóloga pernambucana e professora da Universidade Federal da Paraíba, Rita de Cássia Melo Santos, traz três histórias reais que contribuem para criar um entendimento que coloca as etnias indígenas no centro da formação inicial da Paraíba e que vão muito além da visão de que eles são apenas guardiões passivos da natureza. A autora faz isso mirando justamente na mudança de mentalidade da população de crianças e adolescentes.

“Esse imaginário que recai sobre a nossa sociedade foi ensinado nas escolas. Essa incorporação pouco crítica fazia parte da educação geral. Eu me preocupo muito com essa dimensão de que é na escola que a gente atinge também um público mais amplo. Acredito que a educação básica é como se fosse o berço da nossa formação. Ela é a primeira formação de todos os profissionais futuros e oferece um espaço privilegiado para a gente começar a discutir essas temáticas que são tão importantes para o Brasil contemporâneo”, considera a escritora radicada na Paraíba desde 2016.

As três histórias biográficas escolhidas para a obra são emblemáticas e muito importantes para os estudos de antropologia. A primeira delas é a que dá nome ao livro. “O papel da Muyrã-Ubi e Iratembé é fundamental no processo de construção da província da Paraíba. Muyrã-Ubi é um indígena que trava casamento com o cunhado do presidente da província de Pernambuco, e ela vem a ser chamada como a mãe do povo brasileiro, porque eles tiveram muitos filhos. Esses filhos formaram as primeiras famílias da região que depois vão assumir cargos políticos importantes. Muyrã-Ubi, junto com a Bartira, em São Paulo, e com a Paraguaçu, em Salvador, são, digamos assim, as mães do povo brasileiro. São as três primeiras mulheres que estabelecem um relacionamento marital com homens não indígenas, europeus, assegurando, a formação das primeiras famílias”, relata a especialista.

Já a Iratembé, segundo conta Rita de Cássia, era uma jovem indígena que, ao ser raptada, causa uma série de conflitos que vão levar ao desmembramento da província da Paraíba. “Essas duas mulheres envolvidas nesse primeiro grande caso de formação política mesmo, de estrutura política, de constituição de uma província, me parecia muito impressionante. Fiquei debruçada em escrever sobre isso”. O segundo capítulo é Piragibe e Zorobabé nas entradas ao Sertão, e trata dessas duas lideranças indígenas que se envolvem em conflitos para garantir a presença portuguesa na região.

“Houve uma disputa e várias incursões de franceses, holandeses e outras nações europeias que disputavam o continente americano, notadamente na região do que viria a ser chamado Brasil. E o Piragibe e o Zorobabé fazem essas entradas e consolidam essa presença inicial. São duas outras figuras bastante importantes”, destaca Rita de Cássia. No último capítulo, chamado Antônio Paraupaba e Pedro Poty, Felipe Camarão e Clara Camarão – indígenas entre a cruz e a espada, são resgatas as biografias dos povos originários que tiveram influência durante a ocupação holandesa no Brasil, em uma disputa que acabou em guerra entre católicos e protestantes, numa mistura entre política e religião.

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“Esse não é somente um projeto político-econômico, mas é um projeto também de conversão religiosa. Então, esse é um momento muito sui generis da história da Paraíba, em que você vai ter indígenas letrados que escrevem cartas, trocam correspondências entre si e que questionam a legitimidade moral da guerra. É um momento que demonstra a atuação política pública dessas pessoas num tempo muito recuado”, destaca a escritora, que busca combater com essa história a ideia de que os indígenas estariam limitados a vida de plantio e pesca nas áreas de mata. “Eles estavam tomando parte de um debate político central em termos de comando de exército e forças militares, mas também religiosa e em casamentos e constituição de famílias”.

O conjunto dessas histórias forma um panorama do repertório indígena e da diversidade de atuação que esses grupos tiveram na Paraíba e que continua ao longo do tempo. Para conciliar o uso do livro para além da leitura, a segunda parte da obra conta com jogos didáticos seguindo a temática indígena com quebra-cabeça, desenhos para colorir, jogo dos sete erros e de tabuleiro. Tudo para que sejam estimulados o interesse de um público infantojuvenil. Esse tem sido o propósito da autora desde obras predecessoras, como No Coração do Brasil: a expedição de Edgar Roquette-Pinto à Serra do norte (1912), pela Editora Museu Nacional, em 2020, e do livro De acervos coloniais aos museus indígenas: formas de protagonismo e desconstrução da ilusão museal, da Editora da UFPB, em 2019.

“O objetivo é que o livro possa inaugurar também talvez esse debate que é muito consolidado dentro das universidades e dentro do movimento indígena sobre a importância da participação política que os indígenas representam. Como um efeito secundário, queria que esse trabalho também animasse outras produções, que os próprios indígenas também produzissem materiais didáticos e esse fosse um movimento crescente de diálogo com o grande público, porque eu acho que já é passada a hora. A gente tem muita produção, mas a gente ainda tem muita produção conservadora em relação a esse aspecto. Quanto mais houver pessoas que estejam dispostas a dialogar com diferentes públicos, melhor”, conclui Rita de Cássia.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 28 de fevereiro de 2024.