Foi em 1923 que o primeiro imigrante japonês que se tem registro chegou à Paraíba. Eiji Kumamoto saiu de Kagoshima, sul do Japão, e peregrinou por vários estados brasileiros como São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro, até chegar a Pernambuco, onde passou a trabalhar como contador para uma família influente da região. Ao ser visto pelo Coronel José Pereira a usar com destreza um ábaco – aquela milenar calculadora de madeira que se opera movendo peças entre linhas e colunas –, ele teria sido convencido a acompanhá-lo para Princesa Isabel, no Sertão do estado. Inicialmente trabalhando na usina e nas lojas de Zé Pereira, Kumamoto trocaria o ábaco pela arma de fogo e cartucheiras para defender como olheiro das tropas subversivas a independência do pequeno município paraibano.
Essa história centenária estará sendo relembrada hoje, durante a celebração da 18ª edição do Festival do Japão, promovido pela Associação Cultural Brasil-Japão na Paraíba. Mas essa é só uma das atividades programadas para começar às 19h, no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa. Haverá ainda o pré-lançamento do livro Cultura japonesa: conexões, expressões e memória (Editora CCTA, 106 páginas, R$ 70), organizado pela musicista, pesquisadora e etnomusicóloga Alice Lumi Satomi. Na ocasião, ela receberá ainda, com a presença de autoridades brasileiras e do consulado japonês, a condecoração imperial Ordem do Sol Nascente, a segunda ordem honorífica japonesa mais prestigiada. Apresentações culturais completam o evento, com a participação da pianista Harue Tanaka, do violoncelista Kayami Satomi, do coro Hatsuhinode e do grupo de taiko Tatakinan Daiko, dentre outras.
A publicação que será lançada é uma coletânea de oito artigos e ensaios produzidos por professores e ex-alunos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com foco na cultura japonesa. O livro aborda temas diversos, que incluem tanto análises sobre expressões linguísticas e literárias, quanto cinematográficas e educacionais, em um ponto de vista que tem origem tanto no país asiático como na confluência com a cultura brasileira e nordestina. É o caso, por exemplo, do artigo que cria paralelos sobre as influências do haicai entre o poeta japonês Bashô e o paranaense Paulo Leminski. Outra análise nesse sentido é a que relaciona a arte marcial do kyudo, que utiliza arco e flecha, com a prática de caça e defesa das etnias indígenas brasileiras. Os textos foram garimpados por Alice Lumi por ela ser uma das primeiras e mais importantes estudiosas sobre cultura japonesa em imigração no Brasil e sempre ser chamada a participar de bancas sobre esses temas.
“Tudo que se fala de imigração e cultura japonesa em geral, fala sempre a partir do Sudeste. Essa é a primeira publicação sobre o Nordeste. Esse livro lança um olhar sobre a quarta raça, porque o Brasil é considerado um mosaico de informações étnicas. O país é formado de imigrantes e estava na hora de ter um olhar para as raças do Oriente, que são pouco visibilizadas”, defende a pesquisadora. Um dos textos do livro é de autoria dela: Diáspora japonesa na Paraíba: memórias de Reiko Tsuchiya. O artigo revela como a imigração japonesa começou de forma mais oficial em João Pessoa, por volta de 1939, um período logo anterior à deflagração da Segunda Guerra Mundial. Para contar essa história, Satomi contou com os relatos da última testemunha desse tempo, que morreu no mês de julho.
“Houve um acordo do estado com os imigrantes que estavam no Pará, e que depois se mudaram para onde hoje existe a comunidade São Rafael, no bairro do Castelo Branco, em João Pessoa. Esse é um marco da imigração japonesa porque vieram cinco famílias, em torno de 40 pessoas. Isso tem um valor histórico muito grande e aconteceu para se explorar o trabalho escravo dos japoneses, inclusive por serem um povo muito obediente e que não fazia confusão. Mas aí estourou a guerra e eles passaram a ser considerados inimigos e ficaram isolados no Sertão, sem ter condições nem de plantar”, remonta a profissional paulista radicada na Paraíba desde a década de 1980. Há 30 anos, ela é professora do Departamento de Música da UFPB.
O interesse pelo estudo da diversidade nipo-brasileira está expressa, inclusive, na ilustração do livro. A capa mostra um conjunto de mosaicos que unem pinturas corporais produzidas por potiguaras e tabajaras lado a lado com a arte dos povos originários nativos do Japão. Um conceito que é bem explorado no único artigo publicado fora da UFPB, do doutor em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas, Victor Kanashiro. Em Pode o corpo falar? Cantos da memória e devir indígena uchinanchu, o pesquisador – que é também cantor e escritor – segue por um tema antropológico que tem seu cerne na memória diaspórica para discorrer sobre seu devir indígena em relação à sua cultura ancestral “uchinanchu”.
Na programação
A 18ª edição do Festival do Japão segue ainda amanhã e no próximo domingo, entre 9h e 18h, na UFPB. É lá onde os visitantes poderão participar de oficinas de culinária japonesa, origami, furoshiki, ikebana, mangá, haikai, kumihimo e nihongo. Os ingressos custam R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia) cada dia.
O grupo TenChi Tessen (PE) e grupos de tai chi chuan farão apresentações no evento, demonstrando as técnicas milenares o kendô, kyudô, laidô, karatê e ninjutso. Já o Tatakinan Daiko fará uma apresentação demonstrando a habilidade e a força dos tambores japoneses.
Outras atividades incluem apresentações de Jpop, a música pop japonesa, com intervenção de cosplayers exibindo fantasias inspiradas em personagens do universo japonês. Haverá também um estande da Editora A União, comercializando os mais recentes lançamentos.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 15 de setembro de 2023.