por Joel Cavalcanti*
Com muita inquietude e alguma insatisfação, nascia há 45 anos em João Pessoa a Escola Piollin. Com o desencontro de ideias dos atores Luiz Carlos Vasconcelos e Everaldo Pontes com a direção do curso de atuação do Teatro Santa Roza e a discordância com os rumos artísticos do grupo do qual eles faziam parte, eles decidem criar uma forma própria de fazer, pesquisar e estudar teatro na Paraíba. A decisão viria a transformar o panorama cultural do estado, apresentando para todo o país espetáculos primorosos, atores de grande talento e ainda contribuindo com as comunidades pobres atendidas pelas oficinas da organização sem fins lucrativos. Ao completar quatro décadas e meia de história, a sede onde funciona o Centro Cultural Piollin precisa de ajuda para permanecer ativa na cidade.
“Eu era presidente da Federação Paraibana de Teatro Amador e dava um curso no Teatro Santa Roza. E, claro, havia alguns impedimentos, incômodo com a barulhada das crianças, com a nossa rebeldia – eu tinha 21 anos. Colocava as crianças improvisando como se fossem bichos para elas irem para cima do diretor. A gente queria mais autonomia para pesquisar e estudar. Era isso: uma iniciativa para caminharmos com as próprias pernas”, explica Luiz Carlos Vasconcelos, que já integrava o Movimento de Cultura Artística (Moca), maior grupo de teatro da cidade da época, mas que não oferecia as chances de experimentação que os atores ansiavam.
Trinta mil cruzeiros. Foi o quanto o grupo contava para colocar o plano em prática. O valor foi obtido como prêmio pela montagem da peça O aborto (1976), Festival Regional de Teatro Amador, em Salvador (BA). “Ao invés de dividir esses 30 mil com os 15 integrantes do elenco, decidimos investir em um espaço”, lembra Luiz Carlos, ator e diretor da peça de Gilberto Bastos. Como logo perceberam que o dinheiro não seria suficiente para o projeto que tinham imaginado, eles resolvem seguir a inspiração que vinha de Pernambuco. Em Recife, o teatrólogo Marcos Siqueira, de quem Vasconcelos era aluno, havia conseguido de Dom Helder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, um casario antigo de propriedade da igreja para montar o Teatro Hermilo Borba Filho.
Everaldo Pontes e Luiz Carlos Vasconcelos foram então ao encontro do arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, para propor ocupar as instalações abandonadas do Colégio Estadual do Roger, localizado no Convento Santo Antônio. O religioso respondeu que não poderia autorizar a cessão espaço, pois ele já estava oferecido em forma de comodato ao governo estadual. “Nós, então, decidimos entrar clandestinamente. Fomos no fusca de Everaldo olhar o mangueiral que tem no interior do Convento. Havia casais transando dentro dos carros… era um território de ninguém”, descreve o ator e diretor de Umbuzeiro. Eles invadiram o local se apresentando como representantes da Secretaria de Cultura e que estavam autorizados a ocupar o lugar com uma escola de arte.
Depois de uma grande faxina, eles inauguram a Escola de Teatro Piollin em 27 de março, no Dia Mundial do Teatro e Circo. A Escola Piollin nasce em um contexto histórico de luta da juventude e da classe artística paraibana desejosa por mais liberdade e menos repressão, em tempos de ditadura civil-militar. O nome do grupo é uma homenagem a Abelardo Pinto, mais conhecido por palhaço Piollin e por ser um da arte circense desde a Semana de Arte Moderna, em 1922. A primeira montagem foi da peça A viagem de um barquinho (1978). Trata-se de uma adaptação do texto de Silvia Ortoff e percorreu os bairros da cidade. “Fora a cultura popular que sempre usou a rua com os folguedos e lapinhas, talvez tenha sido um dos primeiros espetáculos a circular pelas ruas. A gente fazia espetáculos pela feira, no Róger, Cruz das Armas, Lagoa…”, destaca Luiz Carlos. Já no ano seguinte, surge um dos personagens mais emblemáticos do criador da Piollin: o palhaço Xuxu. Ele tinha a intenção de mobilizar a comunidade em defesa da escola recém inaugurada, uma vez que a população considerava como um local de bicha, maconheiro e prostituta. O palhaço Xuxu conta e ouve histórias que passa a representar auxiliado sempre por adultos ou crianças do bairro, ganhando a simpatia de todos.
Ainda em seus primeiros anos de fundação, em julho de 1978, o grupo estreia o espetáculo Os pirralhos, estrelado pelas “crianças de Cajazeiras”: Soia Lira, Nanego Lira, Marcélia Cartaxo, Lincoln Rolim e Eliézer Rolim, dentre outros. Com um roteiro criado em colaboração com os atores iniciantes, a peça narra a história dos pirralhos que de um terreiro de uma fábrica tentavam voar mais uma vez para o sol, enquanto se preparam para enfrentar a repressão policial. “Esse espetáculo é resultado dessas crianças que encontramos pelo interior. É quando eu conheço o grupo Mickey e fico encantado. Nunca vi crianças tão talentosas quanto aquelas. Para mim, Os pirralhos é uma das encenações mais interessantes que eu já realizei”, aponta Vasconcelos.
O grupo ficou nas dependências do Convento até 1981, quando o Iphan decidiu restaurar o prédio histórico, o que levou Luiz Carlos Vasconcelos a outra empreitada política. Conseguir uma nova sede para a Piollin. O local escolhido foi o Engenho Paul, localizado no Horto Simões Lopes, na comunidade do Roger, em João Pessoa. Mas havia um imbróglio para a liberação do espaço de posso do governo estadual. “Consegui apoio de todas as escolas de teatro do país e fomos para o Rio de Janeiro. Descobrimos que o ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portella, estava fazendo uma inauguração e, quando conseguimos escapar dos seguranças do ministro, ele disse que nos receberia em dois dias em Brasília. A gente não tinha dinheiro nem pra morrer”, remonta Luiz Carlos. Ele conseguiu com ajuda de outras pessoas passagens de ônibus para a capital federal. Chegando na mansão à beira do lago onde residia o ministro, Luiz Carlos levou consigo uma equipe de reportagem do Correio Braziliense. “Ele se encantou com tudo que levamos a ele e, na nossa frente, ele ligou para o então governador Burity pedindo total atenção ao nosso caso. Nós voltamos com esse poder político grande e, assim, foi feito o comodato com o Governo do Estado”.
Foi no espaço construído no século 19 e que ainda mantém instalações arquitetônicas como a Casa Grande e o Banguê que o espetáculo Vau da Sarapalha foi gestado. O ambiente de mata foi fundamental para a preparação do elenco. O espetáculo foi apresentado mais de mil vezes, ficando 12 anos seguidos em cartaz, recebeu o prêmio Shell na categoria especial e obteve grande projeção, reconhecimento e repercussão em diversos países da Europa, além de Argentina, Venezuela e Chile. Lá, o grupo de atores da Piollin seguia uma rotina de mais de oito horas de ensaios e pesquisas diárias na criação dos personagens, na concepção da cena dramática e dos sons do meio rural.
Em um local por onde já passaram renomadas peças nacionais como Histeria e Negrinha, além de montagens próprias de sucesso como Retábulo e A gaivota (alguns rascunhos), hoje o Piollin atende a comunidade local oferecendo cursos e oficinas de dança, circo e teatro de forma ainda precária. Reformar suas instalações e construir uma estrutura mais adequada para receber o público de volta ao teatro é um dos objetivos principais do Centro Cultural Piollin, onde Luiz Carlos Vasconcelos é, além de fundador, o jardineiro do local reconhecido como o último engenho de cana de João Pessoa. “Agora, me vem a ideia a ideia de renascimento. Espero que esse peso bom dos 45 anos motive as parcerias com o Governo do Estado e com a prefeitura de João Pessoa para que o Piollin cumpra o seu papel de seguir sensibilizando nossas consciências porque estamos vivendo em um mundo de barbárie. São muitos os bichos que afloram nesse momento. A natureza humana está subjugada pelo bicho que existe em cada um de nós. Só a educação de qualidade, a cultura e a arte podem fazer essa doma e transformar isso”, finaliza Luiz Carlos Vasconcelos.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 4 de maio de 2022