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Poesia marginal vinda do Tornado

publicado: 31/01/2024 09h20, última modificação: 31/01/2024 09h20
‘Da Morte à Marte’, que entra em campanha virtual de pré-venda pela Editora Triluna, é a nova obra poética do paraibano Cley Tornado, autor vencedor do Prêmio Literário José Lins do Rego em 2022
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Com previsão de lançamento para abril, coletânea vai reunir cerca de 50 poemas do autor pessoense, abrangendo histórias diversas, vivências reais, fictícias e míticas - Foto: Acervo Pessoal

por Guilherme Cabral*

A poesia marginal é a protagonista da nova campanha de pré-venda da Editora Triluna. A obra Da Morte à Marte, escrita pelo pessoense Cley Tornado, deverá ser lançada no final de abril. A coletânea, que vai reunir cerca de 50 poemas, se encontra em campanha por meio da plataforma Benfeitoria (benfeitoria.com/projeto/damorteamarte) até o dia 10 de março. As formas de apoio são nos valores de R$ 10 (dois lambes em papel A4 offset e colorido); R$ 20 (um print da arte da capa); R$ 40 (livro físico) e R$ 100 (combo com dois lambes, mais o livro impresso).

Todos os textos são inéditos, cujos temas abordados abrangem histórias diversas, vivências reais, fictícias e míticas. A obra é dividida em três capítulos temáticos, que são A Morte, Amar-te e À Marte. “Os poemas fazem uma viagem e, apesar de cada poema ter seu eu lírico próprio, parecem ser os mesmos, através desse caminho até Marte. Mas entendo que, nesse processo, Marte é como a ideia de que a comunidade da periferia, que morre todos os dias, por preconceito, pode se permitir sonhar alto e ocupar espaços de grandeza, em que negros e LGBT, por exemplo, tenham, na cidade de João Pessoa, mais oportunidades de acesso às artes, como a literatura e a música, pois há dificuldades de acesso”, afirmou o autor.

Cley Tornado se considera, sobretudo, um poeta marginal. Ele é um jovem preto, bissexual, que nasceu no dia 30 de setembro de 1998, no bairro de Mangabeira, onde também foi criado. “Sou ‘Tornado’ porque herdei esse nome de minha mãe, Oyá, que sempre esteve comigo, me dizendo que não estou sozinho e que sou forte o suficiente para vencer minhas batalhas”, esclareceu o escritor.

O autor alerta que a obra não é só um amontoado de poemas em série. Por meio dela, Cley Tornado deseja “quebrar a paz” que o leitor tinha antes de lê-la, e, dessa forma, levá-lo a ser contrariado, ou mudar de opinião. “Tenho em mim que, de alguma forma, o livro todo está conectado. Tenho a impressão que todos os narradores são pessoas diferentes, mas que parecem os mesmos em seus universos temporais paralelos. Mesmo sem máquina, a literatura tem esse poder de nos teletransportar através do espaço/tempo. Ela tem esse poder de nos conduzir a olhar para dentro da gente. Para dentro dos outros e outras. Quero ir além, a poesia propõe o dever de causar a guerra. Disseram-me que não se deve levar poesia para se discutir entre os conhecidos, pois isso causaria a guerra. Por isso, temos a tendência de não ler ou falar de poesia. E, assim, a evitamos”, ressaltou ele.

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Imagem: Triluna/Divulgação

Morrer e renascer

No capítulo A Morte, Cley Tornado busca tratar diversos aspectos. “Temos mil formas de morrer, de renascer, de lidar com a morte, de viver a morte, de vergonha, de constrangimento ou até de gozar também. Apesar do medo da morte, lidamos com ela todos os dias, nos jornais, nas estatísticas. Morremos muitas vezes por dentro com rotinas cansativas. Muitas vezes morremos de felicidade também. Ou de vergonha. Ou de cansaço. Ou de loucura. Ou da falta. Ou literalmente lidamos com a morte de amigos ou o medo da nossa morte”.
No capítulo seguinte, Amar-te, o autor enfoca polos do que é amar, ser amado e no que é o amor. “Como podemos ressignificá-lo? Em grandes oceanos mergulhamos e é necessário navegar com equipamentos subaquáticos”, observou ele.

No último tomo, À Marte, Cley Tornado trata sobre o lado mais mítico da escrita. “Podemos, finalmente, tentar dar sentido aos sonhos e pesadelos. Podemos encontrar nossa criança. Embarcar em naves. Criar nosso foguete. Florescer. E decolar. Em um dos poemas, um menino sonha em chegar a Marte, mas enfrenta dificuldades, por parte do sistema. Então, ele desenha um foguete numa folha, depois amassa e a enterra no quintal. Ele sonha e percebe que dessa folha brota árvore com um grande foguete. Então, é um texto que tem um caráter filosófico, pois isso pode representar não só um foguete, mas também a realização de um sonho a Marte como lugar de vitória, de conquista em alguma área da vida, como na profissão ou na família”, disse ele.

“Esse livro nos diz que não devemos ter medo de chegar a lugares distantes. Que não devemos pensar que não somos merecedores de vitórias. Que não podemos perder a ambição de sonhar tão alto. Estar em Marte é uma missão de reorganizar o sistema. É uma missão para ver as pessoas na periferia como humanas. É entender que a comunidade está viva e sonhando alto. Ir para Marte é como buscar por um novo mundo”.

O estímulo para produzir esse novo livro foi a partir da sua primeira obra, Sou Eu lírico, que ganhou o Prêmio Literário José Lins do Rego, na categoria de Poesia, e foi publicada em 2022 pela Editora A União. Naquela ocasião, ele lembrou ter ficado feliz e surpreso com a conquista, compartilhada com a família. “A palavra e a poesia, para mim, surgem como uma faca que abre feridas e que atravessa o cotidiano. Ela surge, também, como um tempo que sara e que cura. Escrevo pela necessidade de abrigo nas palavras e pela resistência e persistência da minha comunidade que se mantém viva, apesar das mortes diárias. Pretendo continuar ocupando esse espaço literário, dentro dessa geração de escritores negros, que chegou firme até aqui graças ao caminhar de nossos ancestrais que de lá para cá vem revolucionando a maneira que o Brasil tem de ler e produzir literatura”, disse Cley Tornado.

Confira três poemas da obra, um para cada capítulo temático (A Morte, Amar-te e À Marte)

FOLIA

Esperamos o ano inteiro pro carnaval
Máscaras, confetes, blocos e beijos
Abraços, pagode, dança, suor e festival
O gueto na avenida em peso
Dançando esbarrei num cara no giro
De graça, na cabeça tomei um tiro
Virei matéria de jornal

APARELHO AUTÔNOMO PARA RESPIRAÇÃO SUBAQUÁTICA

Ah mar!

Por muito tempo observei o mar
Seus ciclos de ondas, indo e vindo
E a ligeira vontade de alcançar
Mares distantes de um profundo infinito
A areia, a maresia
Terreno próspero para as conchas e algas
Sonhei em conhecer o profundo mar
(Pausa)
Por muito tempo também observei você
Em meus sonhos, assim como no oceano
(Lugar que nunca consegui chegar)
Sonhava de noite só pra poder te ver
E conhecer seus lindos cabelos algas crespos
A pele macia, escura (como a minha)
E a sutil brabeza de afogar (ondas tsunamis)

E assim como no mar, nadei em você
A Fim de encontrar esse oceano mulher
Inexplorado, desconhecido e lindo
De barco e equipamentos precisei
Para então chegar
Não sei onde cheguei
Tive medo
Pensei em voltar
Não voltei
Navegar!
Continue a navegar!
Naveguei

Te conheci numa mesa de bar
Muita festa e dança, beijos e afagos
Tsunamis furacões e tornados
Em gestos tão normais para mim, você e o mar
Ah o mar!

Acima de mim só uma estrela
Que de lá eu vim e de lá voltarei
Então mergulho
De corpo e cabeça atravessei
Tão quente e fervor
E ela está tão molhada...
Eu sou mergulhador

Enquanto nado bolhas saem de mim
Como se fossem águas vivas subindo à superfície
Pela primeira vez não senti medo
Diante daquela imensidão
Mulher oceano inundando o mundo
O meu mundo!

Verifico o oxigênio
Não sei se tenho tempo pra observar tudo
Como se eu estivesse numa nave espacial
Mas é isso que torna a experiência tão... tão
Tão
Tão...
Especial!

PRETINHO 2

Que felicidade, o menino nasceu!
Dentre tapas e sonhos desconfiados
Pretinho, desconfiado, choroso
Sonhos regado a prantos seu, nasceu!

Por um momento sonhou em ser
Apenas ser, não sabia o que queria
Não sabia o que seria
Mas sonhava, entre prantos, em ser

Certo dia, sonhou em ser astronauta
Pegou uma caixa, um sonho e uma cola
Amontoou tudo, antes de ir à escola
Abriu a pequenina porta de papelão

Sentou-se em seu foguete
Com as mãos cruzadas e os olhos fechados
Poderia ser o que quisesse ali

Estrelas, luzes distantes
Três, dois, um... decolar!
Através das nuvens gigantes
Avançar!

Céu não há, escuridão vazio
Bola azul e vermelha no espaço:
Marte: planeta fogo
Planeta terra: planeta mar.

Amor à marte
À marte, a morte
Ah mar!
Amor-te.

Era preciso sonhar
Hora de ir à escola

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 31 de janeiro de 2024.