José Lins do Rego foi um dos mais versáteis escritores de sua geração. Além de ter criado uma obra de importância fundamental na história do moderno romance brasileiro, sua produção abrangeu o ensaio, a crônica, a crítica literária, a literatura infantil, a memorialística e a tradução – sempre mantendo o mesmo nível de complexidade narrativa com personagens cheios de nuances que estão intimamente ligados às experiências pessoais e às recordações de infância do escritor de Pilar. É por isso que ele dá nome a um dos prêmios literários mais relevantes e diversos da Paraíba.
No dia 1º de novembro, o Prêmio José Lins do Rego vai entregar, durante cerimônia oficial, as obras impressas que revelam e reconhecem os talentos dos escritores paraibanos. Os vencedores do concurso foram, na poesia, Luana Brito Lacerda, com Ultramar; na crônica, Jurani Oliveira Clementino, com Veredas e Fantasmas; no conto, Rosilene Leonardo da Silva, com Café Morno; no infantojuvenil, Evanio Teixeira da Silva, com Menino Sambudo; e, no romance, Luis Carlos Venceslau, com A vila das bonecas. Todas essas obras saem agora do terreno fértil da imaginação para integrar a Coleção Edições Funesc ao serem produzidas pela Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), através da Editora A União e completarem o seu destino: as mãos dos leitores.
Quando o poeta faz o seu poema,
É vida que lhe sai da cabeça
Évida que está no seu ritmo,
na sua imagem, na sua música
Serão ao todo dois mil livros, sendo 400 por cada categoria, dos quais 50 exemplares vão ser recebidos por cada autor e autora. O material remanescente dos cinco títulos premiados será distribuído pelo Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas da Paraíba e comercializado pela Livraria A União. “Quando o poeta faz o seu poema, é vida que lhe sai da cabeça, é vida que está no seu ritmo, na sua imagem, na sua música”, dizia Zé Lins. É isso que está refletido nos 38 poemas de Ultramar, da cajazeirense Lua Lacerda, que têm por fio condutor o curso das águas dos rios paraibanos. “Minha existência é marcada por águas, doce e salgada, rios e mares, Sertão e Litoral paraibano. Então esses poemas partem de um mergulho nas águas da Paraíba que, na prática, significa mergulhar na nossa própria história”, conta a escritora.
Lua Lacerda é também jornalista e publicou Redemunho (2019), seu primeiro livro de poesias. Ela é uma das responsáveis pelo Mulherio das Letras do Sertão paraibano e organizadora da antologia Ritos e versos para o fim do mundo, que reúne os escritos literários de mulheres sertanejas. Em Ultramar, ela divide os textos em “nascente”, “curso”, “leito”, “margens” e “foz”, em que cada seção possui uma unidade de sentido. “Por exemplo, o Rio Mamanguape que cumpria sua função de bebedouro, na etimologia indígena. Os rios do Peixe e Piranhas que eram a principal fonte dos tapuias, no Sertão. Tudo isso me colocou em contato com uma outra ‘Paraíba’”.
Zé Lins também produziu crônicas com nuances urbanas e cosmopolitas, humor por vezes sarcástico e muito observador dos variados tipos humanos. Quem leva esse legado é o cearense Jurani Clementino, que há mais de 20 anos mora em Campina Grande, onde construiu toda sua carreira profissional e literária. Com as 33 crônicas em Veredas e Fantasmas, ele constrói histórias sobre a experiência do ser humano consigo mesmo, com suas manifestações culturais, com o seu lugar de pertencimento, sua religião, com a natureza, suas relações de convivência e de sobrevivência.
“Tento apresentar um Sertão formado por estratégias de sobrevivência que existem dentro e fora de nós. Que há na experiência compartilhada pelo outro, nas reminiscências da memória, no olhar atento sobre o cotidiano. Um Sertão que carregamos dentro da gente para onde a gente for. Que desaparece e ressurge nas veredas da vida como um fantasma”, define Clementino, que é membro da Academia de Letras de Campina Grande (ALCG), além de Doutor em Ciências Sociais, jornalista e pedagogo. “Quero que as pessoas leiam e se transportem para esses lugares da memória que nos acompanham: as crenças, as superstições, os costumes, as tradições do homem do Sertão. São histórias fortes com personagens comoventes”, complementa o escritor, com cinco livros publicados.
E é desse mesmo Sertão que veio a vencedora na categoria Contos. Natural de Princesa Isabel, Rosilene Leonardo compõe Café Morno com 23 textos que tratam da vida com temas reflexivos, subjetivos, numa proposta de reconstrução do ser, sob uma visão feminina e sertaneja. “O título parte de um conto que traz como tema a efemeridade da vida e as mudanças que se encarregam de trazer ou não o conformismo como um ponto de reflexão. Quando o café está morno é o momento de decidir, se precisa esquentá-lo, tomá-lo ou fazer outro. Há nessa ideia um momento de equilíbrio para as tomadas de decisões”, relaciona a escritora, que é vice-presidente da Academia Princesense de Letras e Artes. Rosilene é autora de Versos Descascados e já venceu mais de uma dezena de concursos literários pelo estado.
Durante a carreira literária de José Lins do Rego, ele reservou para sua única obra infantojuvenil a narrativa mais fabulesca, explorando em Histórias da velha Totônia o universo das lendas e do folclore paraibano – algo que marcou de forma profunda a natureza seminal de sua inspiração literária. Por isso mesmo é tão especial para o conterrâneo de Pilar, Evanio Teixeira da Silva, ter vencido nesta categoria com Menino Sambudo. O garoto em questão é o Moleque Pitoco, personagem do livro que, por meio de poemas, têm contado suas histórias de brincadeiras de criança, da alegria em viver livre, correndo nos campos e convivendo com a natureza.
O menino Sambudo surgiu do anseio de contar as várias histórias e causos que vivenciei na minha infância, e Pitoco é o reflexo disso
“Nas minhas histórias, eu me inspiro em José Lins do Rego, Ariano Suassuna, também José Augusto de Brito e Bráulio Bessa. O menino Sambudo surgiu do anseio de contar as várias histórias e causos que vivenciei na minha infância, e Pitoco é o reflexo disso. Tenho medo de que possa esquecer tudo isso, e o meio de deixar registrado esses momentos foi colocar no papel”, justifica Evanio Teixeira. Ele é poeta da Academia de Cordel do Vale do Paraíba e funcionário público municipal. Em 2021 ele publicou a coletânea poética chamada Prelúdio. Com essas histórias e versos ele parte de uma perspectiva que orientava igualmente o escritor de Menino de Engenho em suas memórias sobre todos os outros meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos.
No prefácio de Usina, livro com o qual Zé Lins conclui o Ciclo da Cana-de-Açúcar, ele afirma: “O romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior”. Para construir A vila das bonecas, o pessoense Luis Carlos Venceslau criou um enredo em torno da trajetória de uma mulher (Severa), que foi vendida na infância e que conseguiu ser salva por um homem que se tornaria o seu marido. Tempos depois, quando ela acreditava que tudo ia bem na sua vida, ela se sente novamente ameaçada e se vê obrigada a tomar atitudes drásticas que acabam impactando na vida de várias pessoas.
Na obra, o autor aborda a condição da mulher na sociedade, carregando um aspecto de denúncia ao retratar vítimas recorrentes da violência e do machismo. “A ideia foi centrar cada capítulo na visão de um personagem diferente, de forma que o capítulo seguinte complementasse o anterior, aprofundando a história até chegarmos ao ponto que desencadeou tudo. No aspecto da escrita, a grande influência, não só nesse como em outros escritos meus, é de Gabriel García Márquez e do seu realismo mágico, mas também há muito de Graciliano Ramos e Zé Lins nas descrições dos ambientes e de Jorge Amado na composição dos personagens”, descreve Venceslau, que é doutorando em Letras na UFPE e publicou, em 2021, seu primeiro romance: O Encanto da Pedra, vencedor do Prêmio Literário José Lins do Rego – 120 anos.
O que mais interliga as histórias desses escritores e escritoras com as do patrono do Prêmio é a realização pessoal por contribuir com a cultura literária e terem o prazer de ver o resultado de seu ofício chegar ao seu objetivo. Ou como certa vez afirmou José Lins do rego: “As literaturas que recebem contribuição popular são as vivas, as grandes. São assim as literaturas que pretendem sobreviver. (...) É na língua onde o povo mais se mostra criador. Mais do que cantando. É falando que o povo nos ensina coisas extraordinárias”. Foi como ensinou o imortal: “A literatura é a própria vida. Logo, para que exista uma verdadeira literatura, preciso se faz que mande a vida”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 26 de setembro de 2023.