A realidade é indomável. No dia 11 de fevereiro de 2012, ela invadiu brutalmente a comemoração de um aniversário realizado na cidade de Queimadas, no Agreste paraibano, para transformar a festa no estupro coletivo de cinco mulheres e no assassinato de duas delas, Izabella Pajuçara e Michele Domingos. Naquele sábado, os culpados saíram da residência em torno das 23h com a justificativa de comprar gelo e voltaram desligando o sistema de energia, armados e com máscaras de Carnaval para praticar o crime hediondo. Onze anos depois, o caso é retratado no livro-reportagem Era apenas um presente para o meu irmão: A barbárie de Queimadas (Todavia, 264 páginas, R$ 74,90), do escritor mineiro radicado na Paraíba, Bruno Ribeiro. A obra, fruto do Prêmio Todavia de Não Ficção, está em pré-lançamento no site da editora paulista e deve chegar aos leitores a partir do dia 8 de agosto.
Na época do fato, Bruno Ribeiro estava morando em Buenos Aires, na Argentina, onde realizava mestrado em Escrita Criativa. Ele começou a apurar o caso em janeiro de 2019 com a intenção de produzir um roteiro ficcional para uma produtora de cinema, mas com a apuração que foi realizada, o escritor percebeu que precisava preservar os acontecimentos tais como eles haviam ocorrido. Um material delicado e brutal. “O meu intuito foi falar como um crime desses pode marcar para sempre uma cidade. Me interessa bastante, na ficção e na não ficção, falar das marcas que atos monstruosos podem deixar nos lugares e nas pessoas. E sim, foi confirmado: Queimadas e a sua população nunca mais foi a mesma depois da barbárie”, afirma Ribeiro sobre a obra mais difícil de sua carreira. “O livro é uma metonímia do que somos. Queimadas é Brasil”.
Bruno Ribeiro foi finalista do Prêmio Jabuti e ganhador do Prêmio Machado DarkSide pelo romance Porco de raça (2021), uma sangrenta distopia de horror. Ao escrever sua primeira obra de não ficção, ele entrevistou mais de 100 pessoas para entender os impactos do caso na cidade de 45 mil habitantes e para dar voz aos relatos dolorosos que são reconstruídos pelas vítimas, familiares e moradores aos policiais e investigadores. Algo muito diferente do que o escritor está habituado, mas que exatamente por isso o motivava a escrever o livro. “A ficção não é o oposto do real, é um alargamento. Um farol. A não ficção tem um efeito mais direto neste real, ela é, de fato, esse real. Obviamente que isso faz com que ela seja uma bomba de efeito mais concreto. Enquanto gêneros, sem dúvidas ambas se complementam. Foi o que aprendi durante o processo de escrever essa longa reportagem”.
Na obra, Ribeiro se utiliza de todos os elementos da narrativa de ficção, lançando mão de suas habilidades para estruturar a história, apresentar as personagens e a trama sob uma atmosfera de constante tensão. “Tudo isso sabendo que estava lidando com fatos e que a minha criatividade só poderia vir à tona na maneira como apresentaria e organizaria essa grande teia de verdades que não poderia, sob hipótese alguma, ser adulterada”, acrescenta o escritor, que mora desde 2005 em Campina Grande – distante 17 quilômetros do local do crime. Mas o que se tem em ‘Era apenas um presente para o meu irmão’ é uma linguagem jornalística. “Os meus leitores mais atentos, com certeza, vão perceber alguns registros bem próprios da minha linguagem na ficção, mas, no geral, é outra proposta, bem diferente do que desenvolvo na ficção”, explica ele.
A literatura de terror muitas vezes serve como uma metáfora para as questões sociais e os medos coletivos. Em um dos capítulos do livro, Bruno Ribeiro demonstra como a barbárie de Queimadas não se trata de um fato isolado ou mesmo infrequente, trazendo outros casos de estupros anteriores, fazendo um escrutínio na intimidade da cidade, numa análise completa e arriscada. “A questão que fica atualmente, porém, é: como o mandante do crime, Eduardo dos Santos Pereira, conseguiu fugir do PB1? É uma pergunta que incomoda e que continua a não ter respostas. É uma lacuna enorme na história e que questiono no livro: Onde está Eduardo? Por que ele ainda não foi capturado?”, questiona Ribeiro. A reportagem também expõe o trabalho de policiais, investigadores e advogados, servindo para analisar o papel das instituições públicas, dando destaque à delegada da época, Cassandra Duarte.
Os envolvidos no crime foram julgados em outubro do mesmo ano. O mentor Eduardo foi condenado a 108 anos e o irmão Luciano, a 44 anos de reclusão. Os outros cinco condenados receberam penas de até 30 anos de prisão fechada, mas todos já tiveram progressão para o regime semiaberto. Jacó Sousa, sentenciado a 30 anos por estuprar duas mulheres e ajudar no abuso das outras três, foi morto a tiros em 2020, quando estava em liberdade condicional.
Começar a escrever uma história sem saber a sua conclusão e entendendo que novos fatos podem alterar a sua conclusão é outro desafio inédito a Bruno Ribeiro, que afirma: “A não ficção nos ensina que é necessário compreender que não há como mover as correntezas. Uma história tão atual dessas sempre terá algo para reavivá-la. A realidade é indomável”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 30 de julho de 2023.