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Hoje, em João Pessoa, o primeiro volume da ‘Antologia do Teatro Paraibano’ será lançado na Fundação Casa de José Américo

Recortes da dramaturgia no estado

publicado: 14/12/2022 13h09, última modificação: 29/12/2022 15h32
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Cena da peça ‘Coiteiros’, de 1977, baseada no texto de José Américo de Almeida - Foto: Foto: Arquivo A União

por Joel Cavalcanti*

 

A base do teatro paraibano moderno teve início quando ele passou a se equilibrar no tripé conceitual de ter um dramaturgo que produz um texto, um diretor que o encena e um elenco que é capaz de poeticamente levar esse texto para o palco. Isso ocorre de maneira sistemática apenas no final da década de 1960, quando a Paraíba sai em busca por uma tendência de encenação mais contemporânea, a exemplo do que já ocorria em outras partes do país. As montagens mais significativas que marcam exatamente esse processo de renovação estética estão pela primeira vez sendo publicadas em Antologia do teatro paraibano (1968-1981) (360 páginas, R$ 50), que tem lançamento hoje, às 17h, na Fundação Casa de José Américo (FCJA), em João Pessoa. A coletânea é fruto de uma parceria entre a Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), através da Editora A União, com o Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Funesc).

Realizando um recorte que reconstrói a paisagem humana da época e que forja uma imagem da Paraíba, a obra reúne os roteiros originais de cinco peças seminais da história do teatro local que foram sucesso de público e crítica e que continuaram sendo referência para uma série de montagens que viriam a seguir: Paraí-bê-a-bá (1968), de Paulo Pontes; O mundo louco do poeta Zé Limeira (1973), de José Bezerra Filho; Coiteiros (1977), texto de José Américo de Almeida adaptado por Altimar Pimentel, Elpídio Navarro e Pedro Santos; Cemitério das Juremas (1978), de Altimar Pimentel; e Beiço de estrada (1981), de Eliézer Rolim.

Escritos há mais de quatro décadas, os textos desses espetáculos permaneciam influentes através das experiências subjetivas dos espectadores presentes nas apresentações, que as difundiam e registravam suas percepções primariamente por meio da oralidade. A publicação integral dos roteiros é a garantia de preservação da memória, que no livro está referenciada por notas explicativas que contextualizam os nomes e fatos da época, além de estarem ilustradas com cartazes e fotos das encenações históricas.

“São textos que marcam uma espécie de identidade do teatro paraibano porque eles vão discutir as representações da terra, representações do povo e representações da cultura paraibana, seja em seus aspectos políticos, ideológicos e também das manifestações populares”, descreve o professor e pesquisador sobre dramaturgia brasileira, Diógenes Maciel. Ele é um dos organizadores da antologia em parceria com a também pesquisadora Monalisa Colaço e com a atriz e mestra em Literatura e Interculturalidade, Suzy Lopes. Elas estarão hoje, às 10h, ao lado do diretor de Mídia Impressa da EPC, William Costa, no lançamento virtual do livro no perfil do Jornal A União no Instagram (@jornalauniao).

No primeiro volume da obra estão presentes roteiros que vieram sob um contexto da década de 1970, quando houve um acentuado crescimento dos festivais de teatro no estado, que acabaram por trazer grandes atrizes, atores, diretores e críticos que contribuíram para o processo de formação profissional na Paraíba. “Ainda nesse contexto, nós vamos ter a abertura do curso de Educação Artística da UFPB, a inauguração do Teatro Lima Penante e o fomento do reitorado da Universidade Federal com uma preocupação muito grande sobre as culturas populares”, acrescenta Maciel.

Em seu conjunto, os textos revelam ainda uma forte conexão com as classes populares durante o período do regime ditatorial, que buscava dissolver esses movimentos, e isso também está refletido na escolha dos cinco roteiros presentes na antologia. Eles constituíram um front de resistência à ditadura civil-militar, como aponta Diógenes Maciel: “Tem algo bastante contraditório. A ditadura militar acabou fomentando muitas pesquisas sobre o que se chamava naquela altura de ‘folclore’, com uma ideia bem idealizada de um povo docilizado. O teatro paraibano acaba pegando esse veio, mas trazendo muitas críticas. Mas parece-me que os militares não conseguem compreender a potência crítica dessas vozes populares que começam a se levantar”.

Um dos grandes símbolos da poética popular paraibana era o Poeta do Absurdo, retratado na peça O mundo louco do poeta Zé Limeira, de autoria de José Bezerra Filho, o único dramaturgo ainda vivo presente na antologia. Depois de ser encenada 67 vezes no interior do estado e 14 em João Pessoa por cerca de seis meses, a peça foi proibida pela censura federal. Quando houve a apresentação para os militares antes da estreia, veio a ordem de limar cerca de metade do texto repleto de sátiras políticas. “Havia cortes que tiravam o cerne da peça. Não tinha como. No ensaio, nós atendemos a todos os cortes e eles liberaram a peça. Só que os desgraçados foram ver o espetáculo quando a gente pensava que eles não iam mais”, remonta José Bezerra Filho, que também era diretor e ator na montagem.

Uma piada em especial na qual comparava o então governador Ernani Sátyro, com uma passeata de jumentos como todas as conotações sexuais, tirou a peça de cartaz depois de lotar todos os teatros por onde passou e de acumular muitos prêmios. Quando finalmente a ditadura perdeu força no país, José Bezerra tentou encenar novamente a peça, mas a idade do elenco pesou contra, inclusive porque em uma das cenas ele mesmo ficava pendurado a seis metros do chão em um balanço. Junto com o elenco, o texto também havia se tornado ultrapassado por usar referências que ficaram datadas. “Era um espetáculo político, e ele envelhece e morre com o tempo, ao contrário do espetáculo histórico”, diferencia José Bezerra Filho, que acredita que o que fez a peça ficar tão marcada na história foi a força de seu texto, personificado no poeta Zé Limeira.

Com exceção de Paraí-bê-a-bá, nenhum dos outros roteiros havia sido publicado antes. “Essa publicação reforça o compromisso de uma política editorial transversal entre duas instituições do Governo. Ela contribui com espaços historicamente distantes do circuito literário da Paraíba, e tem uma capacidade de dialogar com a contemporaneidade e nos ajuda a compreender o teatro paraibano hoje”, destaca o presidente da Funesc, Pedro Santos, cujo avô, o maestro Pedro Santos, adaptou o texto de Coiteiros.

A ideia do projeto é que sejam produzidos mais dois volumes. O próximo deve cobrir a produção de teatro dos anos 1980, e um terceiro e último que iria de 1990 até os anos 2000, fechando o século 20. “Essas peças retratam, lamentavelmente, coisas que ainda ocorrem, como o preconceito contra as religiões afro, como está presente em Cemitério das Juremas, mas também a pobreza e a fome, como está Beiço de Estrada. Em Paraí-bê-a-bá, estão colocadas ainda questões de Paulo Pontes sobre como atrair o público ao teatro. Para a gente é fantástico produzir cultura, valorizar o autor paraibano – ou quem é radicado aqui”, ressalta a jornalista Naná Garcez, diretora presidente da EPC.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 14 de dezembro de 2022.