Quem é você em determinados momentos? O que se faz com determinados recortes de si? A pessoa é construída pelo que ela vive. Independente de ter a sensibilidade de captar como uma antena essas vivências e tudo que acontece ao seu redor (e dentro de si), tais experiências podem ser externadas através da impressão no papel, cujo conjunto dessas ideias e sentimentos é unido e alinhavado pela costura de um projeto.
No caso da escritora e jornalista paraibana Renata Escarião, a sua iniciativa é uma campanha virtual que resultará no seu segundo livro: Entre Costuras de Papel. A pré-venda da coletânea – que reúne textos em prosa poética, crônicas e poesias que ela escreveu nos últimos 10 anos – está acontecendo na plataforma da Benfeitoria (benfeitoria.com/projeto/livroentrecosturasdepapel) até o dia 24 de outubro. A previsão é que a obra esteja pronta na segunda quinzena de novembro, com direito a um evento de lançamento logo em seguida.
“É uma escrita despretensiosa, que teve como objetivo apenas registrar a impressão de vivências, fossem elas externas, de situações e acontecimentos cotidianos, ou simplesmente internas, sobre o que se passava dentro de mim”, define a autora. “Não existe excessiva preocupação formal, tanto que tenho até dificuldades de enquadrar alguns dos escritos em gêneros literários”.
Na campanha virtual de pré-venda, além do livro físico, entre as recompensas estão opções como marca página personalizado, pôster com a arte da capa (produzida por Érica Chianca com ilustrações de Valentina Chianca), além do primeiro livro da autora, Sandálias vermelhas, romance contemplado com o Prêmio José Américo de Almeida 2014, da Fundação Espaço Cultural (Funesc), lançado em 2017.
Tanto o batismo da obra quanto a sua ideia surgiram na busca do resultado do alinhavar de vivências em momentos diversos da vida, nas palavras de Renata Escarião. Já a escolha dos textos foi feita com base na consistência e qualidade dos mesmos.
“Minhas vivências cotidianas, o meu estar no mundo, como mulher que sou, são a fonte de onde a escrita emerge. Portanto, os temas vão do que há mais de intenso, como o desamparo de uma mãe recém-nascida que volta ao antigo quarto na casa dos pais, ao que há de mais rotineiro, como estender as roupas no varal enquanto vejo meu filho brincar no quintal; das turbulências de uma paixão arrebatadora, a viagem que imaginação faz quando meus pés tocam os tijolos bicentenários da antiga casa de família. Todos os temas fazem mais de um caminho, ora como prosa, ora como poesia”.
Entre Costuras de Papel é dividido em duas partes, Parte I – Prosa e Parte II – Poesia, sendo que as crônicas estão na primeira parte, sem nenhum destaque específico, pois é “muito tênue a linha que as separam da prosa poética na minha narrativa”, na avaliação da autora. “De todo modo, não despendi muita energia nessa classificação, se fosse me ater a preocupações formais talvez nunca publicasse”.
Assim como a linha na agulha, dando uma volta no “coser” desta matéria, indo até o seu começo para costurar as suas pontas, retomamos às questões que foram abertas por aqui: Quem é você em determinados momentos? O que se faz com determinados recortes de si? “O livro é expressão pura, intensidade sem muito filtro, que são um recorte interessante, para mim, de quem fui, sou, do meu processo de amadurecimento e de como escrevo, e quis deixar tudo isso registrado em livro”, pondera Renata Escarião. “Para mim, o ciclo do processo criativo e expressivo se completa quando as palavras alcançam as emoções e olhos alheios, e é esse objetivo que se cumpre. Há muito aprendi a respeitar essa força criadora que emana pelos meus dedos sem pedir licença, e que fala ao mundo, ora em voz alta, ora em sussurros, fazendo uso do seu direito e buscando espaço. Eis aqui essa força materializada”.
Confira alguns textos presentes no livro
Mulheres de terra quente
As raízes do meu sangue se espraiam pelas terras quentes do Sertão, por caminhos onde águas subterrâneas amaciaram o castigo do sol e o sangue das mulheres alimentou plantações.
Mulheres sem seus homens – presentes, mas ausentes – que carregaram na alma obstinada o parir de filhos; o peito por vezes seco, de alimento, mas nunca de esperança; o cuidar dos seus… dias, noites e madrugadas, de olhos a nascer com o sol.
Mulheres quentes como a terra. Sedentas de chuva, lavadas pelas águas onde enxaguaram os panos e as feridas. Correntezas de areia, redemoinhos de gestos apurados na labuta. Corações sábios, espíritos de bem. Pés cor de terra.
Palavras emudecidas, desejos contidos, sonhos não vividos, lições perpetuadas. Suor a se honrar. Sangue a se lamber. Amor a se disseminar.
Inspiração de segunda, na terça
Fica difícil manter-se
quando você some por uma semana
e a vida azeda
e o carro não pega
e não se sabe mais porque chora
o soluço seco
Você chegou quando eu sabia quem era
e agora
tantos anos depois
você volta quando eu não tenho mais a mínima ideia de quem sou
mas eu não sou mais aquela(graças a deus)
nem consigo mais
escrever uma linha inteira
fico dando espaço
espaço
Mas é difícil manter-se
quando você some
porque eu quero que você me (re) conheça
mas, as linhas foram cortadas
e agora é tudo virtual demais
e você off
e você off
eu sempre on
Tem uma música
um filme
tudo que eu queria te mostrar
mas, nem consigo mais
escrever uma linha inteira
fico dando espaço
espaço
e você off
E aquele poema
engoli
mais uma vez
o vigésimo coração
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 27 de setembro de 2023.