Como fazer um documentário cuja protagonista é uma pessoa tão ciosa dos menores gestos de vaidade? A cineasta Laís Chaffe não sabe exatamente quando surgiu a ideia de contar em longa-metragem a vida da escritora Maria Valéria Rezende, mas quanto mais lia a obra da paulista que se fez paraibana, quanto mais acompanhava suas entrevistas, mais se convencia de que um filme sobre ela, seus livros, sua vida intensa, seu ativismo, seria também um filme sobre a história recente do Brasil. “Esse foi um dos argumentos para convencê-la a fazer o documentário, pois a Maria Valéria relutou bastante – e isso era esperado e compreensível, se tratando de alguém com uma trajetória de invisibilidade, que sempre se preocupou em ouvir, ver, conhecer e estimular o protagonismo dos invisíveis em nossa sociedade”, conta a realizadora gaúcha sobre a negociação para as filmagens de Mesmo que tudo dê errado, já deu tudo certo.
Quem resolveu o impasse foi a própria Maria Valéria, sugerindo ela mesma um roteiro para a produção de Chaffe. Ela refaria os passos que seguiu em Porto Alegre durante a pesquisa para o romance vencedor do prêmio Jabuti, Quarenta dias, em 2011, e tudo poderia ser explorado a partir daquele recorte. Ela foi até a capital gaúcha especialmente para as filmagens. “Mas precisávamos de mais tempo, de registrar imagens e ouvir outras histórias, em especial aquelas contadas no romance Outros cantos; era necessário falar sobre o movimento Mulherio das Letras, sobre a importância da sua infância em Santos, enfim, eu já conhecia muitos relatos impressionantes que tinham de ser contados para mais gente”, detalha a cineasta. Foi então que ela voltou a insistir para vir a João Pessoa e ampliar o papo que só faria sentido se fosse realizado no famoso jardim de sua residência e na lendária A Bodega. Valéria acabou aceitando. As filmagens incluiriam ainda locações em Santos e no Guarujá, em São Paulo.
O filme que entrou em cartaz em meados deste mês em Santos está em negociação para chegar em breve ao Cine Bangüê, na capital paraibana. A produção conta com animações de Tadao Miaqui e participações de várias escritoras e escritores, depoimentos de familiares e de pessoas próximas a Maria Valéria, a exemplo do amigo e professor Antônio Alberto Pereira, o Toninho, e da amiga e escritora Valeska Asfora. Na trilha sonora, músicas dos paraibanos Chico César e Fuba, além do santista Gilberto Mendes e do gaúcho Leandro Maia. Mesmo que tudo dê errado, já deu tudo certo já chegou a ser exibido por aqui no Espaço Cultural, em novembro do ano passado. A sessão única de pré-estreia nacional compunha a programação do Mulherio das Letras e contou com a presença tanto da diretora e roteirista quanto de Maria Valéria Rezende. Um momento tenso para a documentarista, que preferiu não se sentar ao lado da escritora.
“Você é craque, hein?”, teria falado Valéria para Laís Chaffe depois de assistir ao filme. “Esse era o meu grande medo. Sempre soube que ela é uma grande figura e renderia não apenas um filme, mas uma série. Tem cineastas que desperdiçam histórias maravilhosas de personagens maravilhosos. O filme ficou muito legal por causa da Valéria e fizemos um filme a altura dela. Mas ela gostar é outra coisa. Para minha agradável surpresa, ela gostou e disse que a família gostou bastante”, comenta a realizadora.
Manuscritos clandestinos
Permeado pelo humor afiado da autora, um dos trechos mais surpreendentes do documentário é o contato que Maria Valéria Rezende teve com Fidel Castro, quando ambos saíram conversando pelas ruas de Havana e o ditador cubano se mostrava especialmente curioso com a Teologia da Libertação no Brasil. Um detalhe na biografia de quem foi amiga de Pagu e Paulo Freire, jogou bola com Pelé e pegava ônibus com Carlos Drummond de Andrade.
Também chama atenção a história de quando a freira feminista fazia visitas ao presídio Tiradentes (SP), local conhecido por abrigar presos políticos na Era Vargas e na ditadura militar. Valéria ia para conversar com amigas que haviam sido barbaramente torturadas, mas também acabava secretamente levando e trazendo cartas dos familiares das presas costuradas em cintos de couro. Foi assim que ela conseguiu esconder os originais do Cartas da prisão, que Frei Betto escrevia em letras muito miúdas e que os entregava. Maria Valéria levou os manuscritos de forma clandestina para a Itália, onde o livro foi publicado. “Os relatos da Valéria são impressionantes, de muita generosidade e coragem. Há momentos em que arriscou a própria vida na luta contra um regime de assassinos e torturadores”, aponta a diretora.
Quando Laís Chaffe conheceu Maria Valéria Rezende, em 2009, ainda não sabia de quem se tratava, nem dos prêmios que a senhora que demonstrava tanto interesse por seus minicontos e poemas era. O primeiro encontro foi em João Pessoa, durante o Agosto das Letras, evento para o qual a gaúcha havia sido convidada para falar sobre o projeto criado por ela chamado ‘Cidade Poema’, que leva poemas às ruas, por meio de outdoors, busdoors, adesivos, entre outras iniciativas. “Não conseguia entender o motivo de eu merecer tanta atenção – só depois, conhecendo melhor essa mulher extraordinária, me dei conta de que não se tratava de dar atenção ao meu projeto ou a mim, especificamente: olhar para os lados, valorizar outras pessoas é o que ela sempre fez”. E foi assim que Maria Valéria Rezende conseguiu fazer do documentário sobre sua vida uma história sobre os invisíveis.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 29 de março de 2023.
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