Em deslocamento alternado ora sobre linhas férreas, ora no lombo de animais acompanhado por tropeiros, o paraibano Walfredo Rodrigues (1893-1973) ousou filmar, sob aguerrida precariedade, um documentário acerca do dia a dia de algumas cidades de sua terra na década de 1920. Reunindo captações ao longo de quatro anos (de 1924 a 1928), Sob o Céu Nordestino (1929) teve boa parte de sua filmagem perdida, mas o que sobreviveu às intempéries do tempo (um fragmento mudo de 24 minutos) ressoa agora na produção contemporânea Sob o Mesmo Céu, primeiro longa-metragem da diretora Ana Bárbara Ramos, pernambucana radicada na Paraíba.
O filme, uma cartografia afetiva por entre mapas sensíveis, territórios e memórias, encontra-se em fase de produção, devendo ser finalizado em 2026. Mas o projeto é antigo: começou nos idos de 2008, quando a cineasta cursava Relações Públicas na UFPB. Naquela época ainda não havia programa com grade integral voltada para cinema e ela vivia correndo atrás das disciplinas que contemplassem os aspectos do audiovisual. “Lembro que o professor João de Lima me apresentou uma cópia VHS assim, sofrida, do pioneiro Walfredo”, conta.
Quando da celebração dos 80 anos da obra no descontinuado Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, o Cineport, Ana Bárbara (trabalhando àquela época na Funjope), mobilizou força-tarefa com Torquato Joel para trazer uma cópia melhorada do filme por meio da Cinemateca Brasileira. Imersa no fragmento, o ímpeto de tornar à superfície com fôlego para um filme novo pegou impulso naquele mote de maneira imediata.
A primeira submissão a editais foi em 2014, mas só agora, com aprovação da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), sob recursos da Lei Paulo Gustavo, é que Ana Bárbara veio a filmar efetivamente o trabalho.
“Eu me comovi muito, na verdade, com a ideia de algo tão precioso. Considerando, inclusive, as causas e as condições que ele [Walfredo] teve para fazer esse filme. Eu me volto para os primórdios do cinema e fico vendo o gesto dele”, revela.
O filme de 1929 é mesmo inspirador. Passeando por paragens do Planalto da Borborema, bem assim as paisagens embrionárias de Umbuzeiro, Bananeiras, Araruna, Campina Grande, Patos, Santa Luzia e Cabedelo, Sob o Céu Nordestino atenta para costumes como a vaquejada na terra batida e a impiedosa caça às baleias em alto mar, práticas entendidas sob a lente diacrônica do firmamento sociocultural de sua época.
Palimpsesto
Após um hiato na produção fílmica, Ana Bárbara Ramos retoma o ofício dentro de uma perspectiva de reescrita de Sob o Céu Nordestino. No entreato, continuou trabalhando com cinema, porém com projetos de impacto social na área de educação. Ao tilintar da claquete sensível retorna agora, não com o intuito de refazer os caminhos de Walfredo, mas imbuída de seguir os vestígios do mestre com a mesma missão de retratar a Paraíba interiorana, ora focada em suas minudências.
“Eu me aproximo muito do conceito de palimpsesto. Essa ideia de reescrever sobre o que já existe. Faço também uma cartografia a partir dos lugares que ele visitou, mas obviamente trabalho com a noção de desvios”, explica.
Do Sertão ao Litoral, o percurso de Sob o Mesmo Céu teve sua primeira incursão em Princesa Isabel, município não incluído na cartografia original de Walfredo. “Achei importante começar por lá. Ele não passou por Princesa, e me questionei sobre essa ausência. Organizamos a produção em expedições, e a primeira incluiu ainda o Pico do Jabre, Ouro Velho, entrando um pouquinho por Pernambuco e Monteiro”, detalha Ana.
Olhos de invenção
Para além dos lugares, o documentário ancora-se em encontros com personagens que revelam modos de vida e olhares inventivos. É o que a cineasta chama de “cartografia de olhos de invenção”, inspirada pelos versos de “Testamento”, de Manuel Bandeira (“Vi terras da minha terra. / Por outras terras andei. / Mas o que ficou marcado/ no meu olhar fatigado, / foram terras que inventei”).
“As pessoas com as quais me relacionei moram em situações desafiantes, em contextos difíceis e, no entanto, atuam de forma a inventar um modo de viver”, comenta.
Entre elas está a irmã Terezinha, freira carmelita de Princesa Isabel que mora no Centro de Capacitação Agroecológica (CCA). “Ela é freira, agricultora e apicultora, e faz um trabalho de formação agroecológica com comunidades quilombolas e escolas locais. Mesmo em um território seco, construiu com a comunidade uma reserva de água e conduz toda essa capacitação”, relata.
Outro olhar de invenção vem de Berg, policial penal de Esperança e astrônomo amador responsável por um projeto no qual apenados tornam-se construtores de telescópios, de dentro do presídio, unindo o interesse de Berg pelo céu à possibilidade de oferecer novas perspectivas aos detentos.
As tensões do presente também atravessam os temas centrais de Sob o Mesmo Céu. Dois núcleos fundamentais são a iminência da instalação de parques eólicos e seus impactos na região, bem como o fenômeno da especulação imobiliária no Porto do Capim, em João Pessoa.
O diálogo com Walfredo Rodrigues se dá, ainda, pelo contexto histórico. “Ele voltou do Rio de Janeiro decidido a registrar o Nordeste. Viveu o preconceito de perto e quis mostrar o valor dessa região. O gesto dele era dizer: vocês estão enganados sobre o Nordeste”, afirma Ana, para quem revisitar esse gesto é também um ato de reparação simbólica. “Quando me proponho a reativar a memória desse filme desaparecido, busco atualizar a pergunta que ele fez. Trago novos trajetos, outros protagonistas e uma perspectiva decolonial, conectando memória, direito à terra e justiça ambiental”.
E apesar de todas as tensões do presente, há o encantamento, em histórias como a de Douglas e Josivânia, que tocaram na banda de Zabé da Loca (1924-2017). Ele é hoje farmacêutico em Monteiro, coordenando políticas públicas de saúde. Ela, produtora cultural e agricultora que trabalha com plantas ancestrais.
“Quando me relaciono com o pai do cinema paraibano é em forma de honrar essa relação. De trazer de volta esse legado de Walfredo. O que me move é o cuidado: com a vida, com o território, com as pessoas. Não é uma narrativa linear, mas espiralar, onde memória e presente se encontram para inventar novos mundos”, conclui Ana Bárbara, que conta em sua trajetória com oito curtas autorais, a exemplo de Sweet Karolynne, de 2009 (vencedor de 20 prêmios nacionais), e Cósmica, de 2022.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 06 de agosto de 2025.