O buriti, palmeira frutífera encontrada nas regiões de Cerrado do Brasil, é um importante elemento do bioma de países da América Latina. Seu palmito, sua seiva, sua fécula e seu tronco também têm potencial para extração ou comercialização por quem vive nas florestas e fora delas. Segundo artigo publicado na revista científica Agrarian Academy, em 2018, esse rico vegetal ainda tem uma importante função ecológica: nascendo próximo de regiões alagadas, o buriti serve como elemento de recuperação e salvaguarda de olhos d’água, atuando na manutenção dos rios que os rega. A importância e a resistência dessa planta essencial para os povos originários brasileiros é a metáfora presente em A Flor do Buriti, de João Salaviza e Renée Nader Messora, filme que contará com uma sessão comentada hoje, no Cine Bangüê do Espaço Cultural, em João Pessoa, com a participação dos diretores. O debate será mediado pelo diretor do Bangüê, Gian Orsini.
O filme acompanha a trajetória de três gerações do povo indígena krahô, que vive hoje em região situada entre as cidades de Goiatins e Itacajá, no estado do Tocantins. A narrativa começa na década de 1940, com um “mau presságio”: duas crianças indígenas avistam um boi incomumente próximo da aldeia. O evento precede um massacre real, ocorrido na época, e que vitimou 26 indígenas. A barbárie foi ordenada por Mundico Soares, fazendeiro da região. A relação inicialmente cordial da família Soares com os nativos deu lugar a uma hostilidade incontornável quando Mundico decidiu se vingar dos indígenas pelo abate de algumas de suas cabeças de gado.
"Na época, pensamos em incluir a cena do massacre nesse outro longa-metragem, mas vimos que ela caberia mais num retrato independente sobre o ocorrido"
- Renée Nader Messora
O filme ainda retrata as repercussões do massacre em gerações posteriores e distintas do povo krahô — uma dos anos 1960, outra na atualidade, com cenas gravadas em um protesto realizado em Brasília. O filme foi rodado na terra indígena Kraholândia, tendo como cenários quatro aldeias, em um longo processo de filmagem, que durou 15 meses. O elenco traz atores nativos, incluindo Ilda Patpro, Francisco Hỳjnõ e Solane Tehtikwỳj Krahô que foram premiados coletivamente por seus papéis no Festival de Cannes, no ano passado, onde o longa-metragem foi exibido, dentro da mostra Um Certo Olhar. A Flor do Buriti ainda angariou outros troféus internacionais em mostras na Argentina (Prêmio Apima de melhor filme latino-americano), Alemanha (Cinevision Award) e Itália (melhor filme no Festival dei Popoli de Florença).
A diretora Renée Nader Messora revela que o contato com a tragédia e com seus efeitos no povo krahô ocorreu no trabalho anterior, filmado por ela e João Salaviza —, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de 2018, que também foi premiado em Cannes. “Na época, pensamos em incluir a cena do massacre nesse outro longa-metragem, mas vimos que ela caberia mais num retrato independente sobre o ocorrido. E aí ficou um desejo de pensar essa história, porque é uma memória ainda presente”, rememora a diretora.
Maracá em Cannes
Em 2019, houve, em uma das aldeias, uma reunião que conseguiu juntar 12 guardas rurais indígenas que testemunharam os anos de violência contra os krahôs, para debater e refletir as décadas de opressão contra o seu povo. O encontro foi registrado por João e Renée, que utilizaram a memória dos nativos para remontar as narrativas ficcionalizadas do longa. “Nesta reunião, Francisco Hỳjnõ denunciou o roubo de uma porção de terra nos limites do território indígena. Eles se ‘apropriaram’ do filme como um instrumento potente de comunicação”, pontuou a diretora.
Renée também relata que descobriu, durante o processo de filmagem, que a grande protagonista do filme é a relação da comunidade com a sua terra e os processos traumáticos na tentativa de manter o direito a permanecer nela. “E depois que finalizamos, localizamos imagens de arquivo datadas de 1939, de expedição encomendada pelo Museu Nacional para registrar os krahôs. Essas são as primeiras imagens deles em audiovisual. E lá estava o cacique Balbino, uma antiga liderança. Devolver essa memória para eles foi de suma importância”, destacou.
A ida a Cannes, junto com o elenco premiado por lá, foi uma “pequena revolução”, nas palavras da diretora. Ela rememora que Francisco Hỳjnõ Krahô carregou consigo uma maracá, que foi chacoalhada por ele quando da chegada da equipe no Cinema Claude Debussy, onde o filme foi exibido. “Naquele momento, ele entende que há uma possibilidade de novas alianças, de novas estratégias de resistência e que estas são ‘lançadas pro universo’. Quando lançamos um filme, não sabemos quantas pessoas assistirão, mas, essa janela nos traz possibilidades para o futuro”, assevera Reneé.
Por ocasião do encontro com o público, nesta sessão comentada no Bangüê, Renée aposta na própria imprevisibilidade da audiência e de suas reações para fomentar o debate. Mas ela espera que o espectador possa compreender as “maravilhas” que repousam nos atos de resistência dos krahôs e que possa assimilá-los dentro de suas próprias vidas. “Quando exibimos o filme em Portugal, numa sessão em que Francisco Hỳjnõ esteve presente, uma pessoa da plateia nos perguntou como poderia ajudar os indígenas, no que ele respondeu: ‘Nós é que temos que ajudar vocês’. Essa inversão é necessária nesses últimos tempos”, finalizou.
A FLOR DO BURITI
- Brasil, 2024. Dir.: Renée Nader Messora e João Salaviza. Elenco: Ilda Patpro Krahô, Francisco Hỳjnõ Krahô.
- Hoje, às 19h, no Cine Bangüê (Espaço Cultural, R. Abdias Gomes de Almeida, 800, Tambauzinho, João Pessoa)
- Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de julho de 2024.