Xarope. Essa parece ser a melhor solução para tratarmos a tosse e o acúmulo de muco que nos impedem de respirar melhor. A realizadora pernambucana Renata Pinheiro recorre a uma alegoria “medicamentosa” similar a esse remédio no título e na narrativa de seu novo filme — Lispectorante, que traz a paraibana Marcélia Cartaxo como atriz principal. Com previsão de estreia nacional no dia 8 de maio, o longa-metragem faz uma incursão ao universo da escritora Clarice Lispector, sem ser uma adaptação direta de quaisquer obras dela, ainda que haja referências textuais e biográficas. A União conversou com a diretora e a intérprete sobre a obra.
Começando por Renata, ela rememora que a primeira lembrança que tem de Clarice remete à adolescência e ao “livro fininho” que encontrou, por acaso, no quarto do irmão mais velho, enquanto buscava algo para ler: era Água Viva, de 1973. Enquanto folheava, foi tomada por um misto de encantamento e incompreensão. “Ao mesmo tempo, aquilo me prendeu absurdamente, porque era a primeira vez que me deparava com uma literatura que não era de linguagem narrativa. E também porque era o relato de uma mulher. A gente se identifica muito, mesmo sem ter maturidade para isso, porque as dores são as mesmas”.
Na história que Renata Pinheiro criou, adulta, para Lispectorante, encontramos a artista plástica Glória Hartman (Cartaxo), no meio de uma crise financeira e existencial. Divorciada, ela sai de São Paulo para Recife, seu município de origem, em busca de respostas para os conflitos que enfrenta, encontrando um lugar de apoio na casa em que Clarice viveu, na capital pernambucana. “Glória anulou a sua carreira em função do marido. E ela tem esse jeito muito próprio de ver a vida, com um poder inventivo que ela tem sobre a realidade. E o nome dela não é por acaso, não é? Glória Hartman vem das iniciais em A Paixão Segundo G.H. [livro famoso de Clarice]”.
O trocadilho presente no título utiliza a palavra “expectorante” (substantivo ou adjetivo que definem a droga ou a ação de limpeza das vias aéreas). Mas o “catarro” que é eliminado com a entrada de Clarice na vida de Glória é, segundo Renata, a caretice, a mágoa e a tristeza acumuladas — uma “lufada de ar” no momento em que a artista estreita laços com o passado da escritora ucraniana no Nordeste. “Quando a gente chega numa cidade que não é a nossa, ficamos com uma percepção mais aguçada. Então, tudo que ela vê e absorve, transforma-se em outra coisa, nessa droga sensorial, libertadora”, esclarece.
A escolha da intérprete de Glória também não foi à toa. Marcélia deu vida à trágica personagem Macabéa, na versão da diretora Susana Amaral para o clássico A Hora da Estrela, também escrito por Clarice, originalmente. Além de ter sido premiada pelo papel no Festival de Berlim, em 1986, a atriz cajazeirense ostenta a complexidade dos seres clariceanos, de acordo com Renata. “Sérgio Oliveira, que também é roteirista do filme, falava nela desde o início e é claro que tinha que ser ela. Acho incrível que Suzana tenha descoberto Marcélia tão novinha [aos 21 anos, quando foi escolhida para aquele papel]”, assinala.
Na outra ponta do projeto, Marcélia recorda que seu primeiro encontro com Clarice se deu meses antes do início das filmagens de A Hora da Estrela, em 1984: recebeu das mãos de sua diretora uma cópia do livro. Daí por diante, vieram outras leituras, admirando, a cada trama, o modo como a autora tratava das questões femininas. “Eu fiquei muito surpresa quando soube que ela também viveu no Nordeste [antes de Recife, morou em Maceió, logo que chegou ao Brasil] e conheceu toda a nossa cultura, nossas questões sociais e nossa força. Mas, no fundo, ela tinha uma questão também muito sofisticada de ser”.
Para Marcélia, os personagens criados por Clarice são um prato cheio para os atores que lhes dão vida no teatro ou no audiovisual — ela cita, durante a entrevista, a experiência de Maria Fernanda Cândido na adaptação de A Paixão Segundo G.H. para o cinema, pelas mãos do realizador Luiz Fernando Carvalho, em 2023. “Eu acho que a gente, a partir do nosso ser, identifica-se com muitas imagens, como a cena da barata em G.H. E o valor que a gente dá a muitas coisinhas, que a gente, às vezes, nem percebe, como quando Macabéa fala de gostar de prego e parafuso. Os homens não ficam de fora, porque isso é inerente a todos os humanos”, sustenta.
Antes e durante as gravações, Marcélia esteve na residência em que Clarice Lispector, de fato, morou com seus pais, no bairro da Boa Vista, e na Praça Maciel Pinheiro, onde foi construída uma estátua em sua homenagem. Um dado triste indignou a paraibana: o descaso com o monumento à autora, constantemente sujo de fezes de animais. “Penso que, por meio da arte, como denúncia, a gente pode transformar isso. O filme depara-se com tantas coisas que se acabaram durante o tempo e que a gente pode recuperar. Os governantes poderiam dar espaços públicos como esses para artistas ocuparem”, sugere.
A produção toca em temas caros às mulheres na contemporaneidade, como o etarismo e a valorização delas na arte. Marcélia Cartaxo conclui asseverando que retratar essas questões é algo fundamental, mas que ela mesma, fora das telas, não tem do que reclamar: aos 63 anos, tem recusado trabalhos por falta de espaço na agenda. “Existem atores que só foram se destacar no cinema e no teatro depois de maduros. Só depois do filme Madame Satã [em 2002] que minha carreira de fato deu um ‘boom’. E eu ainda espero escrever um livro e voltar a dirigir. Com estudo, com criatividade e com vontade, principalmente, você não sai da arte em nenhum momento”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de abril de 2025.