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Retorno da cultura clubber

publicado: 03/04/2023 00h00, última modificação: 04/04/2023 13h46
Estilo de vida marginalizado pinçado dos anos 1990 gerou o alicerce do 08Centro, manifestação cultural que debandou das boates e ganhou as ruas do Centro Histórico de João Pessoa
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Jô Oliveira é um dos responsáveis pela festa 08Centro, que ocorre semanalmente de forma gratuita na rua General Osório. Fotos: Júlio César Lira/Divulgação
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Luna Milhões
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Dandara Luz
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Jorja Moura
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por Joel Cavalcanti*

Jô Oliveira é paraibano, um homem preto, gay, de 44 anos de idade. É difícil ignorar a presença dele nos espaços públicos desde a década de 1990, quando passou a expressar seu comportamento dissonante dos estereótipos que o senso comum em sociedade impõem. Mas isso tem um custo. Os olhares de reprovação que percebia nos outros causava um sentimento de estranhamento justamente no momento em que ele se sentia mais realizado por ser quem é, quando se montava de forma extravagante e conduzia eventos em João Pessoa. Hoje, ele é um dos responsáveis pela festa de rua que mais atrai o público excluído do tecido social urbano devido à orientação sexual e identidade de gênero, tudo isso remontando exatamente a manifestação estética da década de 1990. É a volta da cultura clubber na cidade.

Nesse mês de abril se completa um ano que é realizada a festa 08Centro, que ocorre semanalmente de forma gratuita na Rua General Osório. Ela funciona como uma espécie de after do ‘Sabadinho Bom’, que acontece a poucos metros dali, na Praça Rio Branco. É para a rua com nome de militar do exército que convergem as pessoas que buscam uma redescoberta de sentidos, reconstruindo o poder underground na cidade e sendo fonte de energia vital para seus integrantes da comunidade LGBTQIAPN+. É um ambiente fértil para experimentação de subjetividades, afetos, limites e gostos, e conta com música eletrônica e performances artísticas que levantam questões sobre corpos fora dos padrões, gênero, sexualidade, raça e classe.

Isso só ocorre, segundo o professor e pesquisador de Comunicação e Cultura Pop da UFPE, Thiago Soares, porque a própria noção de cultura LGBT está mais complexa hoje em dia. “As letras vão aumentando porque vão aumentando as identidades de gênero que reivindicam seus espaços. O que está acontecendo é o adensamento de um debate sobre as identidades de gênero na cultura LGBTQIAPN+. Como esses espaços são de congregação, afeto e sociabilidade das comunidades LGBTs, essas festas estão tentando acomodar esses novos atores. Isso ocorre por uma marcação identitária, uma vez que elas eram subalternizadas e não tinham condições de operar e circular devido ao preconceito. Com o incômodo com os espaços formais, começam a apostar em espaços de entretenimento específicos para eles”, analisa Soares.

Essa é uma análise teórica que quem convive nessas festas percebe de forma quase intuitiva. “Um clubber reconhece o outro pela diferença. E a ideia é essa mesma: se destacar na multidão”, define Jô Oliveira. “Clubber são seres da noite que lançam tendência que vão além da música. Quanto mais diferente, colorido e original, mais se parece com um clubber”, acrescenta o jornalista, DJ e aderecista paraibano. “Começamos a formar uma nova cena em João Pessoa, que remonta à época das raves da década de 1990 e que se chamava Capim Fashion”, lembra Jô. Capim porque as festas aconteciam no Porto do Capim. Fashion porque quem a frequentava se montava de uma forma a não deixar sua presença passar despercebida. “O que vejo com o 08Centro é um renascimento dessa cena, mas com outras pessoas, outras músicas, outras personagens”.

Na música, o que se ouve é house, techno e electrohouse, remontando à tradição das festas que surgiram na Inglaterra há 35 anos e que deram início a cena rave, que se espraiou para fora das boates e tomaram as ruas em uma forma de resistir aos locais mais elitizados que foram perdendo sua capacidade de simbolizar a subversão do movimento. São clubbers sem clubs, sem boates. Lá é possível ouvir também a batida do vogue, do funk e do brega-funk, que é a música eletrônica brasileira de origem igualmente marginalizada. Quanto à moda, não há regras ou conceitos estéticos muito estritos, preponderando uma mistura de estilos que remonta desde a era da disco music até o que se conceitua como afrofuturismo, que usa elementos da ficção científica e fantasia para dar um novo significado à história da população negra.

A música eletrônica é um marcador importante para a cultura LGBT urbana. “Não é à toa que a gente vai paulatinamente reconhecendo certas homologias estéticas. A estética do funk é muito parecida com a estética da batida, dos gêneros de música eletrônica globais. E o brega-funk também trabalha em batidas por minuto. Essa aproximação se dá através desses grupos sociais que estão aparecendo”, reforça Soares. É compartilhando esses tipos de códigos ligados às roupas, às variações de dança, música e linguagem, como uma espécie de ritualização, que se geram as afinidades que permitem perceber os sentidos e os valores da cultura de uma comunidade.

Para que essa festa eclodisse agora, outros fatores precisaram ser reunidos, porque o que se vê é também resultado de uma precarização econômica, do fim da pandemia e, sobretudo, da aparição de produtores que vêm de classes sociais mais baixas. Jô Oliveira precisou se aproximar do também produtor da festa Yorran Santos. Juntos eles criaram o selo Vida de Clubber, em 2019, que tornou-se um perfil no Instagram que viralizou através de memes que brincavam com o estilo de vida das clubbers. Jô e Yorran se uniram a outros dois produtores do Paraná, Gustavo Nardoni, administrador especializado em marketing digital, e Lucas Reginato, publicitário e designer. Casados, ambos decidiram se mudar para João Pessoa durante a pandemia, uma vez que poderiam trabalhar de forma remota. Aqui, criaram há dois anos o selo Beco Sounds para poder exercer suas atividades paralelas de DJs, nascendo, assim, o 08Centro.

Por ocorrer na rua, o 08Centro suscita debates sobre o espaço público que são acompanhados por discussões por quem milita por um ordenamento urbano mais democrático, transformando a rua em arena de manifestação cultural. “Muitas vezes o estado intervir em alguma área urbana vai significar a expulsão de alguns grupos. Existe esse paradoxo que a chegada do estado pode significar um processo de exclusão ainda maior. O estado deve, antes de tudo, garantir a integridade de seus cidadãos. O lazer e a cultura são parte integrante disso. O que ocorre é o lazer como forma de guerrilha urbana”, defende o pesquisador. Já Lucas Reginato resume isso em uma frase: “A gente só existe ali porque o local é marginalizado”. Parece ser essa uma condição para ser underground.

A estrutura que eles contam para fazer a festa é levantada através de contribuições voluntárias. “O nosso rolê é colaborativo, mas as doações são bem-vindas”, anuncia Jô ao microfone durante o evento, pedindo transferências a um número PIX. Eles pegam emprestado mesas, caixas de som e energia elétrica da General Store. “A gente faz festa por tesão, por gostar. Nunca houve um propósito econômico nesse rolê de rua, que foi realizado para movimentar a área ali aos finais de semana. Mas não tem ninguém ganhando grana. É um movimento de rua e de expressão cultural”, afirma Reginato. Eles afirmam que muitas vezes retiram dinheiro do próprio bolso, oferecendo aos DJs ajuda para o transporte e pagamento em troca de cervejas. O que não os impediu de ter a festa encerrada uma vez sob alegação de que se tratava da exploração de uma atividade econômica em via pública. Apesar da situação de vulnerabilidade, atualmente os órgãos estaduais e municipais legalizam a realização da festa e garantem um policiamento, que observa toda a movimentação a uma certa distância.

O sucesso do 08Centro pode ser medido pela forte presença de pessoas trans, vítimas de diversas violências em todos os âmbitos da sociedade. Mas quem frequenta a festa sabe, esses valores são somente invertidos lá: são as mulheres trans, principalmente as que performam, as pessoas mais poderosas do rolê. Outro termômetro desse êxito é a livre circulação de coletivos populares de batuqueiros e maracatu. A ideia dos organizadores é transformar o 08Centro numa festa itinerante para que possa chegar a toda a cidade, mas para isso negociam apoios com o poder público. “Estamos criando um circuito que tem virado uma vitrine experimental. A cena clubber chega para esse novo fluxo de pessoas. Sem dúvidas, estar na rua é um ato político e movimento de resistência. É muito emocionante ser corresponsável por isso e ter a certeza que estou fazendo algo certo”, finaliza Jô Oliveira.

*Matéria originalmente publicada na edição impressa de 2 de abril de 2023.