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Ritmo de uma escritora

publicado: 20/05/2024 09h35, última modificação: 20/05/2024 09h35
Três vezes vencedora do Jabuti, Maria Valéria Rezende lançou dois livros este ano e já prepara outros
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A santista Maria Valéria Rezende chegou na Paraíba a reboque de seu ativismo social | Foto: Adriano Franco/ Divulgação

por Esmejoano Lincol*

Emília, a boneca de pano do Sítio do Picapau Amarelo, aprendeu a falar após engolir uma pílula falante dada pelo Doutor Caramujo, transformando-se na tagarela que conhecemos. Também foi assim com a pequena Maria Valéria Rezende, mas sob outro ângulo: tão logo aprendeu a ler, tornou-se uma ávida consumidora de livros, sob curadoria de seus pais. Sintoma de “leitura reprimida”, diria o Doutor Caramujo. 

Anos depois, já adulta e acumulando uma longa trajetória como freira, educadora popular e ativista política, Maria Valéria estreou como escritora profissional, relutante, a princípio, em seguir neste ofício. De lá para cá foram mais de 20 livros e três prêmios Jabuti. No último mês de abril, a autora lançou o livro Toda Palavra Dá Samba, que reúne textos produzidos para o Clube do Conto.

Autoalfabetizada

Maria Valéria nasceu em Santos, em 1942. Anos antes de aprender a ler, ela contemplava sua mãe devorando livros:

“No primeiro colégio em que fui pré-matriculada, as freiras recomendaram que não tentassem me alfabetizar antes de chegar na escola, porque o método delas era supostamente melhor. Ou seja, apesar de querer, não poderia aprender a ler. Um dia, descobri na casa da minha avó um livro que tinha figuras e, logo abaixo delas, um nome. Eu ia copiando as letras ali escritas num papel higiênico, imaginando que aquelas palavras representavam as figuras. Meses depois, no primeiro dia de aula, fui ‘chamada por uma professora que pediu que eu escrevesse uma palavra no quadro: poupée. ‘É boneca’, respondi. Naquele momento, descobri que havia me alfabetizado num livro em francês!”.    

Chegando na Paraíba 

Em 1971, Maria Valéria, mais presente junto ao ativismo sindical e político, passou a ser vigiada pelo Regime Militar e foi aconselhada por sua congregação a deixar o país, morando por algum tempo na Europa:

“Queria ajudar aqui, na luta contra a ditadura e a opressão. Como naquele tempo unidades do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) não eram unificadas, havia uma chance melhor de ficar mais tranquila se me mudasse para o Nordeste. Primeiro em Pernambuco. Quando surgiu a vontade de ir para o campo, pedi a Dom Marcelo Carvalheira, então bispo de Guarabira, para ir trabalhar na Paraíba e ele aceitou. Por aqui fiquei”. 

“Escrever? Não vejo graça”

Quando jovem, Maria Valéria achava que escrever um livro era algo que acontecia na vida de qualquer um, como perder um dente ou completar 15 anos. Seu desejo era “correr o mundo”, algo que acabou fazendo como educadora popular:

“Não via graça nenhuma em escrever. Mas tudo mudou com as cartas que eu redigia para a minha avó. Eu sentava à máquina de escrever e começava: ‘Pela minha janela vejo fulano...’ e eu começava a inventar a história desse fulano. Quando eu não tinha dinheiro e precisava presentear alguém, eu editava essas cartas com uma capa desenhada por mim. Em meados dos anos 1990, Frei Beto ganhou um desses textos, que levou para Pascoal Souto da Editora Moderna. Ele ligou, demonstrando interesse em me publicar. Eu pedi conselho para uma grande autora, que me respondeu com um postal: ‘Publique, sim. Você é uma escritora séria. Assinado: Lygia Fagundes Telles’.”

Discípula de Pagu

Na sua juventude, em Santos, Maria Valéria conheceu a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, que havia se estabelecido naquela região anos antes de sua morte. Este encontro rendeu o livro Patrícia Galvão: Pagu, Militante Irredutível, publicado no início deste ano:   

Maria Valéria mostrou seu lado contista e falou da amiga Pagu em livros lançados este ano | Imagens: Divulgação

“Eu e a minha turma de jovens, em Santos, a conhecíamos como Paty. Lá começou uma nova fase dedicando-se ao teatro. Era uma grande educadora, muito paciente com os mais novos. Todos os dias, quando ela acabava o expediente como cronista da Tribuna de Santos, ela saía e se dirigia ao Bar Regina, ponto tradicional, perto da praia. A garotada ia toda pra lá. E nos ouvia com muito cuidado, e nos respondia com o máximo de atenção. A gente aprendia muito. E eu fui amiga dela até o fim”.

Cinco livros em andamento: “Não sei se consigo terminar um deles”

Seu novo livro teve origem no Clube do Conto: este grupo de escritores se reúne semanalmente em João Pessoa para produzir textos inéditos. A iniciativa já dura 20 anos e, segundo Maria Valéria, o espaço é democrático e “horizontal” – sem chefes ou coordenadores:

“É uma espécie de ‘oficina sem mestre’. Lá, nos reunimos para lermos os contos que cada membro escreveu. Depois a gente faz uma votação para escolher um tema para a próxima semana. Às vezes o tema é apenas uma palavra. E o título do meu livro, Toda Palavra Dá Samba, vem dessa rotina”.

Tributo em Dona Inês

No mês passado, a autora foi homenageada na primeira edição da Festa Literária de Dona Inês (Flidi), onde lançou Toda Palavra Dá Samba. Na oportunidade, reencontrou muitos ex-alunos – hoje adultos – que foram tocados por seus ensinamentos como educadora popular nas décadas de 1970 e 1980:

“Chegar lá e reencontrar todo mundo foi uma confirmação de que tudo valeu a pena. Também foi lindo encontrar os participantes da Flidi e ver tudo o que eles produzem. Cada vez estou mais convencida de que somos um ‘povo de artistas’ Falo brincando de que cada três paraibanos, dois são artistas; o terceiro também é, só não descobriu ainda”.

Futuro

Sobre seu horizonte de projetos, Maria Valéria toma bastante tempo para falar dos problemas de visão e audição que dificultam sua produção. Apesar disso, ela fala com entusiasmo sobre sua continuidade no mundo das letras:

“Continuo pesquisando ideias para romances. Tenho cinco livros começados e eu não sei se vou conseguir terminar algum deles. Escrevo 20 páginas e de repente paro. Tenho, por excelência, uma cabeça ‘inventadora’ de histórias”. 

TODA PALAVRA  DÁ SAMBA
- De Maria Valéria Rezende. 
Editora: Dromedário. 88 páginas. Formato: 
15 x 23,5 cm. R$ 45.

PATRÍCIA GALVÃO – PAGU, MILITANTE IRREDUTÍVEL
- De Maria Valéria Rezende.
Editora: Rosa dos Tempos. 124 páginas. R$ 43 (físico) e R$ 15 (e-book).

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de maio de 2024.