O negrume da noite se entrelaça às águas do Paraíba. Remos assombrados revolvem os ventos de Coqueirinho. Uma sombra verde se esgueira, astuta, por entre plantações de agave no interior. Esses e outros “malassombros”, produto da multiculturalidade portuguesa, indígena e africana em nossas terras, compõem as 13 misteriosas e sucintas tramas da coletânea Contos da Noite – Breve Inventário de Lendas Paraibanas, do escritor, jornalista e historiador Bruno Gaudêncio. O livro será lançado hoje, a partir das 19h, no Museu de Arte Popular da Paraíba, em Campina Grande.
A obra conta com ilustrações em xilogravura de autoria de Bebel Lélis, que também estará presente no lançamento. A apresentação do livro fica por conta da escritora Mirtes Waleska, com leitura dramatizada de alguns contos pelo ator Oscar Borges. Contos da Noite conta com apoio da Lei Paulo Gustavo e da Prefeitura Municipal de Campina Grande e já havia sido lançado extra-oficialmente na Escola Municipal Félix Araújo, no bairro do Catolé, em Campina, em razão de contrapartida social aos incentivos.
Bruno Gaudêncio é natural de Campina Grande. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Bruno é professor da rede pública estadual e da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e já organizou e escreveu mais de 25 livros, dentre eles Ariano Suassuna em Quadrinhos (Patmos, 2015), Pedro Américo e o Espelho do Tempo (Plural, 2022) e A Invenção do Cavaleiro da Esperança (Paco, 2023).
Como nascem as lendas
Contos da Noite nasce da percepção do autor acerca da ausência de uma bibliografia mais atualizada sobre lendas paraibanas. Mesmo diante de alguns livros mais tradicionais, como Lendas e Superstições (O Cruzeiro, 1950), de Ademar Vidal, ou Geografia dos Mitos Brasileiros (Ediouro, 1983), de Luís da Câmara Cascudo – no qual o autor trata sobre alguns mitos paraibanos –, Bruno notou que ainda era pouco em se tratando de mitos e lendas da Paraíba. “Eu senti a necessidade de pesquisar mais em livros, mas também consultar pessoas que conhecem as narrativas orais sobre determinadas localidades do estado, e aí veio a ideia”, conta o autor.
Ele relata que essa centelha nasceu há algum tempo, quando uma professora entrou em contato consigo lançando a (até então) obscura pergunta: “Você conhece alguma lenda paraibana?”. Essa interrogativa da colega de trabalho foi justo o ponto de interesse sobre o tema, com o qual Bruno matutou durante muito tempo. O escritor, então, iniciou imediatamente uma extensa pesquisa, levando em média três anos para organizar os contos. Após alguns anos engavetada, a obra ressurge em 2023, inscrita na lei de incentivo, vindo a ser publicada em 2024.
“Todos os treze relatos são contos noturnos, o que nós chamamos tradicionalmente de contos de ‘malassombro’. Na tradição oral, são contos assustadores, que têm mistério, que envolve algum tipo de sentimento, eu diria, noturno. Então eu fiz uma seleção que tivesse esse recorte”, explica o autor.
Uma quarta dimensão
Quando olhamos para o histórico das publicações de Bruno, percebemos que a coletânea é uma obra diferenciada. O próprio autor reconhece que se dedica pouco ao conto, tendo escrito apenas um livro do gênero, Cântico Voraz do Precipício (Via Litterarum, 2011), também de caráter mais noturno e envolvendo mistérios. “Talvez seja exatamente o livro que tenha alguma coisa mais a ver com essa obra”, comenta. Realizando uma prévia seleção das narrativas, eliminou os contos classificados como “menos sombrios”, como detalha: “A ideia era criar realmente narrativas que tivessem essa pegada de mistério, né? E aí foi quando houve a sacada: a ideia do noturno. A noite como um grande símbolo de mistério, uma alegoria, podemos dizer assim”.
A produção de Bruno Gaudêncio compreende múltiplos caminhos, que vão desde ensaios e textos acadêmicos na área da historiografia brasileira e paraibana, como também poesia e biografias em quadrinhos. As ficções são apontadas pelo autor como uma quarta dimensão, profundamente influenciada pela história, tendo em vista a sua formação profissional como historiador.
Essa dimensão caracteriza-se, portanto, pela interconexão entre realidade histórica e ficção, trazendo para si uma preocupação em relação à construção de uma identidade paraibana. “De tentar compreender o que somos, o que é que nos interliga, o que nos liga enquanto sujeitos e o que está relacionado à identidade regional, identidade local que a gente chama. O que é ser paraibano? Então essas narrativas têm, de certa maneira, no fundo, uma preocupação com isso”, destaca Bruno.
O porvir da noite
No lançamento, o autor irá detalhar pontos importantes sobre a pesquisa que está na origem do livro, bem como curiosidades sobre o processo criativo. Além disso, a ilustradora da obra, Bebel Lélis, responsável pelas xilogravuras que ilustram cada um dos contos, também fará uma fala sobre esse mesmo processo, afora os responsáveis pela edição, que comentarão um pouco acerca da produção editorial. Na leitura dramatizada, o ator Oscar Borges fará a leitura de quatro contos, encenando um pouco do livro, e a escritora Mirtes Waleska, do Cariri paraibano (radicada e residente em Campina Grande), exporá as suas impressões de leitura do título.
Contos da Noite já se encontra à venda no site da editora Meroveu, no valor de R$ 40, bem como diretamente com o autor. Em breve, o livro será disponibilizado também em algumas livrarias de Campina Grande e João Pessoa e os interessados podem entrar em contato por meio do perfil de Bruno no Instagram (@brgaudencio). O trabalho ainda não possui versão eletrônica, mas o autor revela que um de seus projetos é fazer um podcast com a leitura dramatizada de todos os contos, dentro em breve.
“É sobre colaborar nessa questão do conto popular aqui na Paraíba, sobretudo, os contos de mistérios, de malassombro, e esse livro tem uma importância, dentro dessa divisão que eu faço, entre a produção acadêmica, a poesia e as biografias em quadrinhos, e entre esse lado da minha produção ficcional, que é pequena ainda”, finda Gaudêncio, alumiando os caminhos de sua ficção crepuscular.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de setembro de 2024.