Nos idos de 1972, prestes a entrar num dos projetos de maior sucesso da história da música no Brasil, o então ator Ney Matogrosso decidiu consultar uma cigana sobre o seu futuro. A mulher sentenciou: “Você terá muito sucesso por 30 anos. Será algo como Carmen Miranda”. O artista deu de ombros, achando uma asneira aquela predição, sem saber que a prospecção estava correta, exceto por um detalhe: o êxito do cantor e do tal grupo superaria — e muito — as três décadas. Essas e outras histórias estão presentes em Primavera nos Dentes – A História do Secos & Molhados, que remonta o passado e o legado permanente do conjunto. A minissérie documental, com quatro capítulos e exibição semanal, estréia hoje, às 21h30, no Canal Brasil.
A União assistiu com antecedência e exclusividade os dois primeiros episódios, que utilizaram como base o livro de mesmo nome, publicado há dois anos por Miguel de Almeida. O texto é ampliado no material audiovisual, que também foi roteirizado e dirigido por Miguel.
Uma montagem alternada com cinejornais e uma gravação do espetáculo O Rei da Vela, de José Celso Martinez Corrêa, ajudam a historicizar a narrativa. Ney e Gerson Conrad, membros da formação clássica, fornecem depoimentos detalhados sobre o contexto de formação do grupo, assim como artistas que orbitaram o grupo, direta ou indiretamente — o instrumentista Paulinho Mendonça, o ator Cláudio Tovar e a atriz Helena Ignez são três deles.
Primavera nos Dentes esbarrou, todavia, num problema aparentemente incontornável. O terceiro integrante-fundador do Secos & Molhados, João Ricardo, não somente recusou-se a participar como não permitiu que famosas canções do grupo, como “O vira”, “Sangue latino” e “Flores astrais” fossem utilizadas como trilha sonora, ainda que a produtora, a Santa Rita Filmes, tivesse obtido autorização de todos os demais envolvidos.
A solução para o imbróglio foi sanada com o retorno ao estúdio: Ney, Gerson, Emilio Carrera (piano) e Willy Verdaguer (contrabaixo) (os dois últimos, remanescentes dos primeiros álbuns), produziram faixas inéditas, inspiradas na obra do grupo. Uma delas é “Ouvindo o silêncio”.
O episódio de estreia, a propósito, não ignora esse “elefante na sala de estar”. A separação do grupo, em 1974, é explicada por Gerson como consequência do “bichinho da vaidade”, que teria corroído o trio — nas entrelinhas e, mais especificamente, que teria atingido João, a partir do sucesso do primeiro LP e do contexto de gravação do segundo disco. O “desencontro” de narrativas é outro ponto curioso, a exemplo da demora de Ney em aceitar o convite do Secos & Molhados — para este, foram dias; para Gerson, meses. Um dado comum aos integrantes era a presença da repressão em suas vidas: o pai militar e truculento de Ney e a Ditadura portuguesa que precipitou a vinda da família de João Ricardo para o Brasil.
Seguindo na cronologia de eventos, Primavera nos Dentes reitera dados que já haviam sido retratados na cinebiografia de Ney Matogrosso, Homem com H, lançada nos cinemas no primeiro semestre deste ano. A maquiagem característica e marcante surgiu, por exemplo, como fruto da timidez surpreendente do vocalista, que optou por assumir essa persona apenas nos palcos.
O intérprete adiciona, ainda, novos relatos a histórias conhecidas. A cantora e compositora Luhli, coautora das canções “O vira” e “Fala” e responsável por apresentar Ney aos demais, teria sido destratada por João Ricardo no encontro inicial. Este último foi, veementemente, repreendido pelo vocalista, numa conversa particular, dias depois.
A despeito dos conflitos de antes e os de agora, Gerson Conrad, em conversa com A União, assinala que o imbróglio com os direitos das canções do Secos & Molhados acabou proporcionando uma reunião auspiciosa de pessoas que há décadas não dividiam um estúdio: “Foi gratificante. Mesmo porque, conseguimos trazer na nova trilha o mesmo espírito e DNA da época”.
A carreira meteórica do grupo surpreendeu até a sua gravadora da época: a Continental teve que derreter vinis de outros artistas, que estavam encalhados em seu estoque, para conseguir suprir a demanda de discos. “Acho que hoje é mais difícil um artista causar o mesmo impacto cultural que tivemos. São outros tempos os dias de hoje”, sustenta Gerson.
Primavera nos Dentes será exibida às sextas-feiras, com reprises em horários alternativos — aos domingos, sempre às 19h; aos sábados, às 17h. Reverenciado e compreendido, no presente, junto a Ney Matogrosso e João Ricardo, Gerson conclui asseverando que a liberdade criativa e seminal de seu conjunto foi propiciada, ironicamente, pela ignorância das forças repressoras à frente do estado brasileiro.
“O Secos & Molhados aproveitou-se do não entendimento cultural que tinha o regime militar na época. Os militares não entendiam nosso trabalho e, por esse motivo, a Ditadura não batia de frente com os movimentos do grupo”, resume.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de outubro de 2025.