A década de 1990 já indicava uma radicalização no modo de produção do Jaguaribe Carne. Depois de quase 20 anos de fundação com músicas registradas apenas em fitas cassetes alternativas, o grupo vencia finalmente a falta de dinheiro para gravar seu primeiro LP. Jaguaribe Carne Instrumental era lançado há 30 anos e se configurou com o passar do tempo em um documento histórico da música de vanguarda popular. “O disco continua moderno e é capaz de surpreender quem vai ouvir pela primeira vez. Não tem muita gente fazendo esse tipo de música, juntando a vanguarda com a música tradicional”, afirma o músico paraibano Paulo Ró.
O projeto inicial era que o disco fosse gravado no Recife (PE), onde chegaram a dar início aos trabalhos, mas as dificuldades financeiras impediram a conclusão do plano. A solução foi dada por Odair Salgueiro, professor de percussão na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e timpanista da Orquestra Sinfônica da Paraíba. Ele emprestou os equipamentos necessários, além de ter assumido a função de técnico de gravação, mas na prática tornou-se também uma espécie de diretor no estúdio improvisado no Cine Bangüê, do Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa. Foram duas madrugadas de outubro de 1993 em que o disco foi gravado ao vivo, sem a presença de plateia. O horário era uma alternativa às condições dos aparatos tecnológicos disponíveis que não isolavam os ruídos externos que viam da rua.
“A gente nunca tocou bem. Aquelas músicas que estão no disco eram difíceis e a gente fazia porque gostava de fazer daquele jeito. Na hora de tocar, tinham uns probleminhas de execução, mas o Odair sempre dizia: ‘Vamo simbora’. Isso foi uma coisa que me marcou muito. Outra, foi a experiência. O disco foi gravado como uma diversão, e é até hoje. Nossa música é para se divertir”, relembra Paulo Ró. Ele, com violão de nylon, dividiu a execução instrumental das músicas com Pedro Osmar (violão aço) e Adeildo Vieira (percussão), tendo os demais músicos descritos na ficha técnica do disco contribuído para os vocais e outras experimentações.
Sem os conhecimentos sobre as técnicas de gravação, era comum, por exemplo, que alguns gritos de Pedro Osmar estourassem na captação, levando Odair a recomeçar sempre a execução da música. “A gente sempre foi muito obediente com relação a isso. Eu fazia do jeito que o caba mandava, sem problema nenhum”, diz Ró. Se dentro do Bangüê eles acatavam as ordens, no regramento rítmico das músicas o que predominava era a insubordinação. Das 10 faixas, quatro fazem referências diretas a estilos musicais determinados que possuem uma instrumentação característica e uma andamento harmônico e melódico definido, que era inteiramente subvertido pelos violões dos irmãos de Jaguaribe.
‘Fome? Que fome?’, faixa que abre o disco – e uma das duas que têm letra –, é um coco de roda apenas com elementos percussivos, com destaque para o ganzá. ‘Piratas de Jaguaribe’, terceira faixa, é um frevo de rua sem o naipe de metais, apenas os violões e o surdo tocado por Adeildo Vieira. Na faixa seguinte, ‘Ritmo de baião’, tem poucas semelhanças com o som de um trio pé de serra – apesar de ser isso o que Paulo Ró diz ouvir na música. Já na sétima faixa, o grupo apresenta ‘Ciranda’, mas sem chocalhos e sem a marcação forte e característica da caixa batida com baquetas.
Se para quem ouve fica uma impressão de desconstrução e dissonância musical, para os músicos aquela era a forma mais natural de apresentar aqueles sons. “Essa música é do coração da gente. Tem que faça música para fazer sucesso. A gente faz música porque é aquilo que a gente sente, esse é nosso sentimento. Querer criar, inventar e fazer algo com liberdade. A gente quer fazer uma coisa que não se pareça com nada e quando você ouve, é a gente”.
As músicas executadas com violões e violas já estavam prontas antes de eles entrarem no estúdio, mas duas faixas foram realizadas na hora, de improviso, e são as mais experimentais do LP: ‘Liquidificador industrial’ e ‘Acho que vem alguma coisa por aí’. Entre todo esse repertório, duas características são sempre reiteradas por Paulo Ró para definir o trabalho que realizam no disco. A primeira delas é o minimalismo. Mesmo com tantas referências musicais que passam pelo jazz, o choro, a música clássica, a indiana e os ritmos populares do folclore, o resultado é desprovido de excessos. A instrumentação é reduzida e a duração das faixas, curta. O total das 10 músicas – sem contar com a entrevista ao final – não chegam a 40 minutos.
“Eu sou mais minimalista que Pedro, porque gosto muito da repetição. O minimalismo deve ter sua técnica específica, mas o que eu faço é o que a gente sempre fez: colocamos essa música popular dentro da estética minimalista. Você precisa ter um certo conhecimento rítmico para você sair dividindo as células, e juntar com outras células. É uma matemática, na verdade”, compara Ró. O segundo aspecto que ajuda a traduzir os princípios do Jaguaribe Carne é o atonalismo, ou seja, quando não se segue as regras tradicionais da harmonia tonal. Em vez disso, se utiliza uma série de notas ou acordes que não têm uma hierarquia tonal clara, resultando em uma sonoridade dissonante e muitas vezes experimental. “Não é que eu vou fazer um baião que é uma música atonal. Faço uma música atonal ser um baião”, resume Paulo Ró.
Além das performances com os hibridismos musicais, o grupo também queria investigar se o conceito visual do LP teria alguma interferência na fruição das músicas. Para isso, mais de 40 artistas plásticos foram encarregados de criar uma capa única para cada disco. O disco com selo do Musiclube e editado em Recife foi prensado na Sony Music, do Rio de Janeiro, com mil cópias. Nenhuma delas com uma capa igual a outra, o que faz com que um exemplar desses tenha virado item de colecionador e seja encontrado hoje por até R$ 1,6 mil na internet. O projeto gráfico elaborado pelo artista plástico Dyógenes Chaves contou também com uma foto no encarte de autoria de Gustavo Moura que se tornou antológica: um retrato de família muito simples em frente a casa humilde em Jaguaribe.
Pedro Osmar e Paulo Ró sempre defenderam a ideia de que a música deve ser uma forma de liberdade e de expressão pessoal, para ser usada como uma forma de resistência e de contestação social. Com o disco, eles se posicionaram como críticos em relação à falta de renovação e de criatividade na música brasileira, ao menos aquela que não rompe com os padrões estabelecidos nem expressam as contradições do país. E esse continua sendo o maior foco de sua guerrilha cultural, como afirma Ró. “A música popular brasileira não seguiu esse rumo de ser diferente. Ela foi, acho que por questões de mercado, se transformando em uma coisa mais normal. As pessoas não adentraram por essa linha mais diferente, uma música mais voltada para o insucesso”, brinca o músico sobre o “insucesso” que já dura 30 anos do primeiro disco do Jaguaribe Carne.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 7 de maio de 2023.