A literatura sempre esteve na base de todas as expressões artísticas de Socorro Lira. Cantora, compositora, poeta e cineasta, ela une todos os seus ofícios em uma só linguagem: a de contadora de histórias. “Antes de ser cantora, queria ser escritora desde bem cedo, e vim ser um pouco depois. Mas as minhas letras são poesias também. São textos reflexivos e, algumas, são minicontos”, explica a paraibana de Brejo do Cruz. Em seu primeiro romance, Falar dos meus amores invisíveis (Livros Legais, 166 páginas, R$ 50), ela produz uma obra marcada pela autoficção na voz de uma mulher de 65 anos que aprendeu em retrospecto que a maturidade lhe autoriza a falar sobre silenciamentos e rupturas, sobre o amor e a existência.
Essa mulher é Ondina. Ela foi formada para o casamento e para todos os condicionamentos que o sistema patriarcal impõe. Para descrever esse processo, o livro tem sua narrativa estruturada em três seções temáticas. A primeira se debruça a descrever e elucubrar sobre o núcleo familiar marcado pela presença feminina e constante da mãe e da irmã. Na segunda parte, a personagem se permite falar sobre os amores e relacionamentos com outras mulheres que passaram por sua vida. Na terceira e última parte da obra estão textos que narram o encontro da personagem com a espiritualidade. Em todas essas seções há recortes de várias referências para a escritora, como trechos de músicas, enxertos de poemas e de filmes.
Esse é um livro que você pode ler como se fossem pequenas histórias. Porque é um livro de memória da personagem. Então, ela vai contando histórias, contando causos da vida dela --- Socorro Lira
“Esse é um livro que você pode ler como se fossem pequenas histórias. Porque é um livro de memória da personagem. Então, ela vai contando histórias, contando causos da vida dela”, afirma Socorro Lira. Hoje com 50 anos, ela começou a escrever Falar dos meus amores invisíveis há cerca de 15 anos, quando ainda não sabia que finalidade daria aos textos que produzia. Naquele momento, a perspectiva de ter 65 anos parecia uma ideia longínqua e os seus amores, invisíveis. “Em geral, os amores que não estão na caixinha, que não estão legitimados pela igreja, pelo judiciário. Esses amores foram muito mais invisíveis e agora eles se mostram, mas ainda muito repreendidos”.
O mesmo processo que cerca e cerceia Ondina é o mesmo que Socorro Lira tenta se desvencilhar em seu romance. “O livro veio mais da necessidade que a gente tem, às vezes, de passar a limpo a vida. O que a gente compreende da vida. Num dado momento, pensei que isso poderia ajudar alguém a buscar por histórias desse tipo, quem sabe se identificar e ajudar. E eu achava que 65 já era uma pessoa muito velha. Mas a pessoa que fez 65 está começando muitas coisas na vida. É uma idade em que a pessoa está realmente ativa, tomando decisões. Como eu estou começando”.
Sem gênero
Concluído em 2020, quando o mundo enfrentava os períodos mais incertos com a pandemia, Falar dos meus amores invisíveis ganhou um lançamento apenas virtual. Três anos depois, ele foi reeditado pela Liraprocult Editorial para duas versões em e-book, uma em português e outra em inglês, traduzida por Pedro Pimentel e com capa de Bernardita Uhart. É esta edição que agora ganha uma versão física pela primeira vez, neste ano, através do selo Livros Legais. Em ambas as edições, o prefácio é da escritora Maria Valéria Rezende. “Na época, Maria Valéria me disse: ‘Olha, esse livro não se enquadra em nenhum gênero. Eu nem gosto muito de rótulo também. Ele é um romance, porque quem escolhe o que é o livro é o autor”, conta a escritora.
Para toda contadora de histórias como a artista paraibana, nenhuma amarra pode ser aceita além daquela que a autora se compromete na autenticidade de sua observação criativa. Nenhuma autoridade se obedece em contraposição a uma natureza narrativa de sua vida. “Essa coisa de até que a morte nos separe, isso é da igreja, isso não é do amor. Isso é das instituições, que têm interesse capitalista, dos herdeiros, das heranças, principalmente na perspectiva do homem, que é o dono da casa, o dono da família, o dono da esposa, o dono dos filhos”, defende Socorro Lira.
A história de Falar dos meus amores invisíveis é também para dizer que o que Ondina aprendeu com o amor é o que Socorro Lira canta em sua música e escreve em sua poesia. “O que Ondina descobriu de mais importante sobre o amor é que o amor da gente é pra gente. O amor da gente é nosso. A outra pessoa, o alvo do nosso amor, é livre. Ela é livre e ela pode ou não nos corresponder. Mas quem tem que se haver com os nossos desejos, os nossos sentimentos, as nossas aspirações, e aí é o amor mais ampliado, o amor amadurecido, somos nós mesmas. Felicidade é se a outra pessoa retribuir”, finaliza Socorro Lira.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 06 de fevereiro de 2024.