Apesar de militar em defesa do Vietnã nos anos 1960 e 1970, o músico Arnaldo Brandão não gostou quando o parceiro Tavinho Paes chegou dobrando o nome da capital do país (Hanói) como sugestão de batismo para seu grupo musical. Foi convencido pelo amigo quando explicado que a expressão vinha de uma história de ficção científica, na qual os nomes duplos representavam cidades satélites ao redor da Terra. Há três décadas orbitando o cenário musical brasileiro sem pôr no mundo álbum novo, a Hanoi Hanoi lançou em setembro o registro fonográfico e audiovisual 30 Anos na Insanidade (Ao Vivo), marcando o reencontro entre seus membros e um resgate do melhor momento do rock nacional. O álbum está disponível, gratuitamente, em todas as plataformas de áudio e também no canal oficial da banda no YouTube.
Gravado em 13 de maio de 2017, durante a festa Casa da Insanidade, realizada em Belo Horizonte, o registro deveria ter sido lançado antes da crise sanitária global. “A gente ia lançar antes da pandemia, mas aí ela veio e bagunçou tudo. Então a gente resolveu lançar agora como um presente para os fãs”, explica o baixista e líder do grupo, Arnaldo Brandão — iniciado na música com a banda A Bolha, além de ter integrado um dia A Outra Banda Terra, ao lado de Caetano Veloso. A origem do trabalho remonta a uma reunião motivada pela saudade e por um impulso televisivo.
“A gente estava meio parado, aí a Rede Globo lançou a novela Totalmente Demais. Resolvi reunir a banda, estava com saudade dos meus velhos amigos e unimos e gravamos esse DVD lá em Belo Horizonte”, relata o músico.
Pode parecer estranho (já que a banda possui 40 anos de existência), mas 30 Anos de Insanidade celebra justo a gênese da primeira formação do Hanoi Hanoi, que data de 1985. O DVD conta com participações especiais de nomes proeminentes da cena musical brasileira, tais como o vocalista e guitarrista do Skank, Samuel Rosa — quando de sua primeira banda, a Pouso Alto, Samuel abrira muitos dos shows da Hanoi Hanoi —, o rapper Renegado, natural de Belo Horizonte, e Affonsinho Heliodoro, o primeiro guitarrista da banda.
Natural de Fortaleza, Ricardo Bacelar (teclados e guitarra) é dono do selo Jasmin Music e foi quem capitaneou a edição em estúdio. “Eu gosto de produzir. Essa parte musical me fascina; estar dentro do estúdio, inventando, criando. Dentro do estúdio tudo é mais apurado, controlado, porque depois que grava não tem mais jeito”, comenta ele acerca do processo. “O Hanoi foi uma experiência muito boa na minha vida”, confessa o músico, que só veio a entrar para a banda depois que hits como “Totalmente demais” — presente no LP Hanoi Hanoi (1986) — já haviam estourado nas rádios.
Natureza crítica
Entre as 31 faixas, que incluem sucessos como “Blá blá blá… eu te amo (Rádio blá)”, “O tempo não para” e “Totalmente demais”, duas composições inéditas figuram no álbum, mantendo a tradição da banda em abordar criticamente as agruras sociais. “Tá tudo podre”, composta por Arnaldo e Tavinho Paes, retrata a realidade da política no Brasil, enquanto “Idiota” traduz a bestialização de parcela da sociedade por força dos meios de comunicação, sobretudo a propaganda.
“A marca da banda é a performance ao vivo que, modéstia à parte, é muito boa, sempre foi muito admirada pelo público. Rock ao vivo tem muito mais energia do que em estúdio”, pontua Ricardo. Arnaldo lembra da natureza crítica do rock feito pela Hanoi Hanoi.
“Eu queria poder mudar o mundo. Eu achava que eu tinha o poder de mudar o mundo. Mal consegui mudar a mim mesmo”, observa, sob perspectiva alterada pelo tempo: “Antigamente eu queria destruir o sistema. Hoje eu quero que o sistema funcione pelo bem de todos. Principalmente da minoria, das pessoas mais necessitadas”.
Zona fantasma
Questionado sobre o fim da banda nos anos 1990, Arnaldo caracterizou o período como “férias”: “Nunca acabou”. Por volta de 1997, a banda se viu sem gravadora, sem empresário e sem mercado. A partir desse momento, cada membro seguiu carreira solo ou se juntou a outros projetos, como foi o caso do baterista Marcelo da Costa, que passou a tocar com Roberto Frejat.
“A gente se ama, se adora. Eu costumo caracterizar que é que nem revista em quadrinhos: quando os super-heróis somem dos quadradinhos da revista dizem que estão na ‘zona fantasma’, aguardando ressuscitar”, brinca Arnaldo. “A gente é muito irmão, gosta muito de estar junto”, diz Bacelar. “Foi muito divertido gravar esse disco. Quando nos encontramos nos ensaios, parece que o tempo volta; não passou. O tempo é uma ilusão”.
O longo período entre a gravação de 2017 e o atual lançamento foi resultado de divergências técnicas e circunstâncias externas — diante da montagem do DVD, Ricardo resolveu mixar novamente em seu estúdio; após a nova mixagem, o baterista também manifestou insatisfação com a sonoridade da bateria.
Sobre o sucesso da banda, Brandão creditou o estado de Minas Gerais como pilar fundamental para a sobrevivência do grupo de 1986 a 1997, já que a gravadora RCA, responsável pelo lançamento da banda, não investia na promoção do grupo no restante do país.
“Em Belo Horizonte não existia jabá nas rádios. Por isso a gente conquistou um público gigante em Minas Gerais, porque a partir do primeiro LP, principalmente do nosso segundo LP, Fanzine, das 10 músicas, oito tocaram nas rádios”, detalha. A rádio, naqueles anos, era um meio de divulgação absoluto, sem a concorrência da internet. Enquanto a gravadora não impulsionava a banda no restante do Brasil, a popularidade mineira garantiu a longevidade do Hanoi Hanoi. “Foi em Minas que a gente se deu bem nesse sentido de ser conhecido”.
A despeito do lançamento do DVD e da disponibilidade do grupo para shows, os membros da Hanoi resultam dispersos — Bacelar mora em Fortaleza, Sérgio Vulcanis (guitarra) mora em São Paulo e Arnaldo e Marcelo da Costa (bateria) moram no Rio —, o que dificulta a organização para apresentações constantes.
Arnaldo lamenta que o público demonstre menos interesse por músicas novas, preferindo se divertir e rememorar canções já conhecidas. Para Ricardo, isso ocorre devido à vontade que as pessoas têm de relembrar das próprias vidas, linkando música e tempos idos.
No momento, Brandão revela projeto solo de regravação da música “Como vovó já dizia” (1973), censurada na época em que foi registrada com Raul Seixas — o lançamento está previsto para este ano. Ricardo Bacelar gravou, no ano passado, os álbuns Donato (ao lado da cantora e compositora Leila Pinheiro) e Aracati (este na companhia de Jaques Morelenbaum), e assinou no fim de agosto o single “Aqui, oh!”, junto a Flora Purim e Airto Moreira.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de outubro de 2025.

