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Trabalho em progresso

publicado: 24/09/2025 08h44, última modificação: 24/09/2025 08h44
A montagem e a desmontagem de exposições tornam-se a própria arte na obra de Rodrigo Bettencourt da Câmara, em exibição a partir de amanhã, em Campina Grande
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Fotografias mostram o trabalho muitas vezes não notado que antecede e sucede uma exposição em si | Fotos: Bettencourt da Câmara/Divulgação

por Esmejoano Lincol*

Onde começa e onde termina uma exposição? A gênese e o fim podem estar no olhar, que conduz o público por entre as obras. Mas para o artista responsável pelos itens, o começo e o término estão em outro lugar: uma parede vazia. O processo de montagem e de desmontagem de objetos de arte em galerias europeias é interesse do português Rodrigo Bettencourt da Câmara, que inaugura em Campina Grande a mostra A Quarta Parede, reunindo imagens que capturam esse percurso. A estreia acontece amanhã, a partir das 18h, no Museu de Arte Popular da Paraíba (MPPA), Centro da Rainha da Borborema. A visitação acontece gratuitamente, de terça-feira a domingo, das 14h às 19h, até o dia 24 de outubro.

Antes da vernissage, às 17h, Rodrigo preside palestra sobre sua experiência como artista, docente (na Universidade de Lisboa) e restaurador do catálogo do empresário José Berardo – esta e outras coleções são administradas pelo Centro Cultural de Belém (CCB), em Portugal. Voltando à exposição, A Quarta Parede conta com oito imagens, escolhidas a partir de um catálogo maior, acumulado ao longo de duas décadas (outras fotos puderam ser vistas pelo público na edição de agosto do suplemento literário Correio das Artes). Para esta exibição no MPPA (popularmente conhecido como Museu dos Três Pandeiros), o material foi impresso em dimensões que variam de 70 centímetros a quatro metros.

As fotografias foram realizadas com câmera analógica, utilizando, em alguns momentos, longas exposições – as imagens “borradas” têm ilusão de movimento. Os “cliques” dão conta de instalações realizadas por Rodrigo em museus como o de Luxemburgo e no próprio CCB. As primeiras imagens foram capturadas no Japão. “Ali nós tínhamos 30 pessoas a montar. Cada um tinha uma especificação, uns que faziam furos, outros ‘agarravam’ as obras. Veio a ideia de olhar isso como se fosse um palco de um teatro. Vendo as coisas chegarem, serem distribuídas e as paredes vazias. E a primeira coisa que nós vemos são as paredes vazias, não é? É como começa uma exposição, na verdade”, ele destaca.

Rodrigo sustenta que a montagem e a desmontagem podem soar desinteressantes para o grande público, mas que é neste ínterim que os processos de cada obra encontram sobrevida. De acordo com ele, o modo como as peças são dispostas nos espaços públicos precipitam interações com estes ambientes, e encampam, assim, novas possibilidades. “Tenho uma fotografia do artista austríaco do Peter Kogler, de 2009. Uma das coisas mais interessantes que ele faz é criar uma série de padrões geométricos que preenchem o espaço interno e ‘destroem’ a sua arquitetura. Portanto, quando nós entramos naquele espaço nós não conseguimos perceber essa arquitetura e seus ângulos, nós só vemos a obra dele”, analisa.

A arte e o tempo

A partir de uma ampla atuação nesse segmento – da produção de obras autorais à restauração de peças antigas –, Rodrigo Bettencourt da Câmara começou a trilhar o caminho das artes na segunda metade da década de 1980, por meio de suas primeiras experimentações com a fotografia e os elementos plásticos. Nos anos seguintes, cursou a faculdade de Belas Artes. Esse período coincide com a unificação dos currículos acadêmicos no continente. “Fiz o primeiro curso de Conservação e Restauro que apareceu em Portugal, uma coisa nova e muito avançada para época. Depois, fiz licenciatura em Arte e Multimídia e passei para mestrado em Fotografia, tudo isto com a ideia do percurso em continuidade”, rememora. 

Registros mostram instalações do artista português em países como Japão e Luxemburgo

O ingresso no mercado de trabalho aconteceu de forma simultânea à apresentação da Coleção Berardo ao público europeu. Por meio das centenas de obras a que tinha acesso e do contato com o próprio José Berardo, ele pôde afinar seus conhecimentos em restauração e a experiência que acumulou nas décadas seguintes, compartilhando-a com alunos e interessados. “A conservação e o restauro exigem uma grande dedicação, é um trabalho quase médico. Nós vemos uma peça que tem um problema, que está estragada, manchada e a ideia é conseguir retomar o aspecto inicial ou algo próximo disso. É quase um milagre. Em obras que atingem valores muito elevados, a tarefa, então, tem um peso muito maior”, diz.

Quando questionado sobre como trata as peças de coleção de outras pessoas ou de instituições públicas em relação às suas próprias peças e sobre como ele mensura a “paixão” que mantém por ambos os segmentos, ele confidencia que acaba tratando “pior” a sua produção autoral pela responsabilidade que infere ter com o trabalho de outro artista. “Há trabalhos que demoraram dois, três, quatro anos, avançando um bocadinho, depois mais um pouco. Tratamos de uma coisa que não é nossa, tendo que respeitar e criar procedimentos, compreender ‘o quê leva a quê.’ Às vezes, há obras que temos de  refazer com o artista ainda vivo e nos comunicarmos com ele. Isso requer um cuidado gigantesco”, informa.

Mantendo contato estreito com a ação do tempo, Rodrigo ressalva, todavia, que o artista não pode ser tolhido pelas limitações dos materiais a que tem acesso, já que todos eles apresentam níveis maiores ou menores de deterioração conforme as décadas passam e alguns deles, como jornal ou lixo, já passaram por um processo primário de descarte. “Eu achava estranhíssimo quando alunos me perguntavam como é que se fazia uma obra de arte perfeita, que não se degrada. A tua primeira preocupação deveria ser em criar, não é? E nós podemos fazer isso com materiais incrivelmente econômicos. Ou sofisticados. A arte é feita de uma panóplia de meios, de processos. Mas há regra, não há um manual”, finaliza.

.*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de setembro de 2025.