Em 19 de novembro de 1865, nascia, na fazenda da Melancia, em Pombal, Leandro Gomes de Barros (1865-1918), um dos maiores poetas da Paraíba. Apesar da alcunha de “príncipe dos poetas” ter sido outorgada ao parnasiano Olavo Bilac, o poeta Carlos Drummond de Andrade certa vez contestou tal principado, apontando Leandro como o verdadeiro membro da realeza poética nacional, “Rei da Poesia do Sertão” nos termos de Drummond. Justo em homenagem ao nascimento do poeta de Pombal é que hoje se comemora o Dia do Cordelista.
Das mais autênticas expressões artísticas do Nordeste brasileiro, a literatura de cordel continua a desempenhar papel fundamental na valorização da cultura popular. De origem portuguesa e inspirado pelas novelas medievais de cavalaria, o cordel, com versos publicados em folhetos que tratam de temas diversos em linguagem popular, chegam ao Brasil em fins do século 18. A propósito do Dia do Cordelista, A União procurou aqueles que mais entendem do assunto para um proseado sobre suas relações com a poesia popular, que, à revelia de toda a modernização do século 21, se mantém viva e pulsante.
A peleja de Nelson no reino de Princesa
Quando o número de seu telefone lhe é solicitado para contato, o técnico judiciário, pesquisador e cordelista Nelson Barbosa informa o registro em rimas improvisadas. Natural de Princesa Isabel e criado entre os rios Pajeú e Piancó, ele relembra os tempos idos da infância e os costumes de seu lugar, há mais de 40 anos.
“Desde pequeno, a gente reunia o pessoal para ler cordel na calçada à luz de lamparina. Eu era transportado a outros mundos. Havia mágica no folheto A História da Princesa do Reino da Pedra Fina, de Leandro Gomes de Barros”.
A iniciação de Nelson no cordel foi moldada pelo ambiente rural, no qual os folhetos de cordel funcionavam como legítimos veículos de notícias, levando narrativas épicas, lições de moral, reflexões sobre o cotidiano e valores, como o respeito aos mais velhos, empatia e valorização da sabedoria popular.
Limitado pelos parcos recursos da época, chegava a escrever em papel de pão. “Eu dobrava o papel em quatro partes, cortava com uma faca, fazia um jeito de uni-los e desenhava na capa”, conta.
No entanto, essa dedicação teve outras pelejas que não apenas a da falta de recursos. Um episódio marcante foi o embate com visões modernistas, levadas ao poeta por um jornalista que desqualificava o cordel tradicional, rotulando-o como ultrapassado diante do verso branco.
A crítica abalou o jovem Nelson, levando-o a descartar boa parte de sua produção inicial. Ainda assim, a essência poética permaneceu viva, sustentada pelo reconhecimento comunitário e pelo potencial de oralidade presente no cordel.
Após estudar de forma autodidata, passou para o curso de Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e descobriu que o cordel, longe de ser ultrapassado, era tema de estudos atuais, em áreas como Estilística e Linguística. A paixão pela poesia popular levou Nelson a desenvolver pesquisas acadêmicas de mestrado, doutorado e pós-doutorado que abordam desde as raízes do cordel até a sua conexão com narrativas globais. “O cordel é um patrimônio mesmo e é do povo brasileiro, e a raiz é nordestina, é paraibana”, afirma.
Entre tantos “folhetos poéticos” —nome que soa a Nelson mais adequado para definir os livretos em cordel —, o poeta destaca histórias memoráveis, como as denúncias sociais do poeta Patativa do Assaré. Para Nelson, em todo o Nordeste, sobretudo com a ajuda dos institutos federais de educação e as universidades públicas, tem acontecido um intenso movimento de valorização da poesia popular.
Histórias de jovens cordelistas
“O meu nome é Jota Lima / Sou Poeta Popular / Eu venho lá de Serrinha / Na arte de improvisar, E começou bem cedinho / No ambiente escolar”. Criado no interior da Paraíba, o cordelista Jota Lima teve seu interesse pela leitura estimulado ainda na escola, e sua formação literária foi complementada por vivências entre familiares e professores que abriram caminhos para sua paixão pelos versos.
Seu primeiro cordel — Um Matutu na Capitá — nasceu de um concurso escolar de poesia em 2006 que não só projetou sua carreira como o ajudou financeiramente em um momento difícil. “Estava sem comida em casa, saí com meu irmão oferecendo o cordel ao preço de R$ 2 para as pessoas, de casa em casa, e conseguimos comprar comida para alguns dias. Nunca esquecerei que, naquele primeiro mês, alguns folhetos de cordel alimentaram a nossa família”, conta.
Com mais de 50 títulos já publicados, Jota aborda uma diversidade de temas, desde ciência e saúde até questões culturais e políticas. “Escrevo sobre Ciências / E o que mais imaginar / Só não falo de futebol / Promode não apanhar”. Doutorando pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), o cordelista pesquisa sobre a popularização da ciência por meio do cordel e destaca o potencial educativo da poesia popular, especialmente no ensino de ciências. “O Dia do Cordelista em si, representa um momento de lembrança e salvaguarda dos poetas populares brasileiros”, diz.
Nascida e criada em Cabaceiras, Juliana Soares começou sua história com o cordel em 2008, quando iniciou nos primeiros versos. Naquele ano, quando participava de um curso de formação, a poetisa optou por entregar o trabalho final do curso sobre literatura de cordel. “Eu narrei todo o curso em cordel e não parei mais de escrever. De 2008 para cá, já são mais de 20, com temas diversificados”, com obras impressas e impulsionadas pelas redes sociais.
Ela lembra que a literatura de cordel é um gênero literário secular que veio para o Brasil e se instalou, especificamente, na Paraíba e em Pernambuco, no século 19. “Celebrar esse dia é celebrar a nossa própria cultura, a nossa identidade literária. A literatura de cordel presta um serviço, desde o seu surgimento, de disseminação de conhecimento e difusão de histórias”, diz Juliana. Divulgando sua arte não apenas no Sertão do Cariri, Juliana expõe seus folhetos poéticos em festas, saraus e feiras literárias de Cabaceiras e cidades vizinhas.
Cordéis do amanhã
Para Juliana, a literatura de cordel possui um futuro promissor, dada a renovação constante do gênero que hoje em dia não se circunscreve aos folhetos, mas ocupa também os ciberespaços da internet. “Temos novos cordelistas surgindo, e isso é um sinal de que a literatura de cordel vai permanecer viva e forte como sempre foi”.
Jota afirma que a presença do cordel é cada vez mais notável, haja vista o comparecimento do cordel em eventos literários, como a Flip em Paraty e a Bienal Internacional do Livro de São Paulo. “A literatura de cordel pode nos ajudar como um deleite nos dias de desamor, solidão ou saudade”, ressalta Jota.
“Nosso povo está precisando de afeto, de carinho, de acreditar no ser humano. O ser humano é aquele que é bom, que ajuda o próximo e o cordel acolhe esse espírito de bondade, de gratidão, de mostrar pelo exemplo o que deu errado e o que deu certo, buscando sempre a autoestima e a resiliência”, conclui o poeta de Princesa Isabel.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de novembro de 2024.