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Um Brasil sem tela

publicado: 11/09/2023 10h17, última modificação: 11/09/2023 10h17
Realizadores paraibanos avaliam a necessidade de se ter uma política para promover a exibição de conteúdo nacional nas salas de cinema
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Longas-metragens como a ficção ‘Desvio’, de Arthur Lins, e o documentário ‘O seu amor de volta’, de Bertrand Lira, são exemplos de produções recentes feitas na Paraíba - Foto: Carambola Produções/Divulgação

por Joel Cavalcanti*

O dia de domingo é um dos preferidos de muitos para ir ao cinema. Acompanhar os lançamentos na telona da sala escura é uma experiência que move multidões. Mas quem quiser assistir a um filme nacional talvez dê viagem perdida se for a qualquer uma das maiores redes de exibição em João Pessoa. Das 61 sessões programadas para hoje nos multiplexes de shopping center da capital paraibana, apenas seis delas contém uma produção brasileira em cartaz. Só duas produções nacionais (a comédia O porteiro e a cinebiografia Ângela) conseguiram um pequeno espaço entre as produções estrangeiras (fora a programação do Cine Bangüê, que não é multiplex). Um problema que se agravou desde setembro de 2021, com o fim da cota de tela, a política aplicada em diversos países para promover a exibição de conteúdo nacional nas salas de cinema.

Na semana passada, um projeto de lei de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) que renovaria esse instrumento legal por mais 20 anos acabou frustrando o setor audiovisual ao ser modificado de última hora pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO). Com a emenda do parlamentar, as salas de cinema foram retiradas do projeto, e o texto passou a se referir apenas a TVs por assinatura. O PL segue agora para a Comissão de Comunicação e Direito Digital antes de ser encaminhado para a Câmara dos Deputados. Com isso, as salas de cinemas permanecem desobrigadas a exibirem filmes nacionais de longa-metragem, respeitando o número mínimo de sessões, dias e horários fixados anualmente pelo Executivo.

“A ausência da cota de tela acarreta a impossibilidade do brasileiro de assistir ao seu próprio cinema. Sem a cota de tela, o maior parque exibidor do Brasil vai abrir espaço para os mesmos filmes de grandes distribuidoras multinacionais. O que a gente combate quando defende a cota de tela é a ideia de determinados filmes que monopolizam as salas. Para o brasileiro, a cota de tela garante uma diversidade de opções para ele fazer a sua escolha. A ideia não é substituir os grandes lançamentos hollywoodianos, mas coexistir com eles”, explica o cineasta paraibano Arthur Lins, dos longas Desvio (2019) e Pele fina (2022).

A ideia não é substituir os grandes lançamentos hollywoodianos, mas coexistir com eles

As consequências da perda da validade da cota de tela podem ser medidas por vários números, e todos eles expressivos. Entre os anos de 2012 e 2019, o cinema nacional detinha 13% do mercado. Segundo a Ancine, em 2023 esse número caiu para 1,4%. Em relação ao público, houve uma queda de 90% em comparação com 2019, ano pré-pandemia. O faturamento seguiu a mesma direção da ladeira. Segundo o portal Filmes B, há quatro anos oito filmes nacionais obtiveram mais de um milhão de espectadores. Até agosto deste ano, só três ultrapassaram a marca de 100 mil ingressos vendidos. E se o espectador insistir em assistir a um filme nacional, é bom ter uma disponibilidade de tempo bastante flexível. O fim da cota de tela também levou a exibição das produções brasileiras para horários alternativos, como pode perceber o cineasta de Cajazeiras, Bertrand Lira.

“Fui ver O pastor e o guerrilheiro, que estreou no Manaíra Shopping, só às 22h. Fui com meu irmão Buda Lira, que atua no filme, e só tínhamos nós dois na sala. Com o shopping fechando, não há apelo para o público ir ao cinema. Com isso, a gente preferiu ir embora”, conta Bertrand, diretor do longa O seu amor de volta (Mesmo que ele não queira) (2018). Além dos horários incomuns, os títulos nacionais ficam pouco tempo em cartaz. “Os filmes passam uma semana nos cinemas e depois saem de cartaz sem ter divulgação. Já se provou que no Brasil temos capacidade técnica e artística para fazer bons filmes; e também com apelo popular. A quantidade de filmes brasileiros que precisam de sala é enorme”, acrescenta Lira, que já foi diretor do Cine Bangüê, em João Pessoa.

Novas regras, velhos argumentos

Segundo a proposta original, a elaboração de um decreto anual deve contar com a participação de entidades nacionais que representem atividades de produção, distribuição e comercialização de obras cinematográficas. Os longas-metragens brasileiros premiados em festivais, com reconhecida relevância receberão tratamento especial e diferenciado. Ainda pelo projeto, a empresa que descumprir as medidas será multada em 5% da receita bruta média diária de bilheteria do complexo multiplicada pelo número de dias do descumprimento. Se a determinação de exibição após as 17 horas não for obedecida, a multa pode variar de R$ 2 mil a R$ 2 milhões. Ainda no final do último mês de agosto, o PL foi alvo de protestos dos executivos das redes exibidoras.

Para as entidades que representam o setor, existe o risco de salas serem fechadas caso o texto original seja aprovado. Em nota, eles afirmam que nunca faltou sala para os blockbusters nacionais e que não se pode obrigar o público a comprar ingressos para o que ele não quer ver. “(O projeto) pode ser uma pá de cal para os exibidores brasileiros, que ainda sofrem com os impactos da longa paralisação provocada pela pandemia. O PL desconsidera que os cinemas estão sofrendo com a falta de lançamentos, sejam nacionais ou internacionais, que tiveram as produções paralisadas durante a crise. Mesmo após a reabertura das salas, o setor ainda está com índice 35% inferior de lançamentos, níveis de público 40% abaixo do cenário pré-pandemia e administrando milhões em dívidas acumuladas no período, situação que tende a se agravar com a greve de roteiristas e atores de Hollywood, ainda sem solução”, afirma a nota.

Seu amor de volta 01 Foto Bertrand Lira.jpg
Foto: Alessandro Potter/Divulgação

As justificativas foram duramente criticadas por produtores, atores, diretores e distribuidores de obras nacionais. “Esses argumentos são absurdos. Essa é uma visão de mundo deles, mas tem interesse econômico aí também. As distribuidoras fazem um lobby muito grande junto aos políticos contra a aprovação desse projeto. O público vai ao cinema por causa da publicidade que um filme tem ou pelo boca a boca que se cria sobre determinada produção. É preciso ter ao menos uma sala com uma programação permanente de cinema brasileiro para que as pessoas se habituem”, defende Bertrand. A questão também foi rebatida por Arthur Lins. “Ninguém quer obrigar a assistir ao filme nacional, mas que a gente possa perceber o desenvolvimento do nosso cinema nas telas. Isso não está alinhado com o atual momento do audiovisual do país. Como o público pode julgar ou refletir sobre sua própria identidade se ele não tem acesso ao que é produzido no país?”.

Com um domínio de quase 90% dos cinemas brasileiros por filmes de Hollywood, não ter a cota de tela que controle essa desigualdade é ainda mais trágico quando o cinema nacional busca mais uma retomada através do acesso inédito a um montante de financiamento através da Lei Paulo Gustavo. O limbo jurídico que regulamenta o setor impacta diretamente uma indústria que, segundo a Ancine, é formada por 12.946 produtoras independentes e 3.396 empresas distribuidoras. “A cota de tela é só uma etapa para poder criar uma proximidade do público brasileiro com o cinema nacional. Precisamos combater o pressuposto que o público não quer se ver na tela e que a qualidade técnica e artística do filme brasileiro é inferior ao filme estrangeiro. Acho essa atitude um tiro no pé. O parque exibidor tem que ser um aliado para criar essa proximidade. O desenvolvimento do audiovisual nos últimos quinze anos foi gigante. É um processo histórico incomparável com outras fases, principalmente com a regionalização dos recursos. Existe um outro cinema que o público precisa conhecer. Se a cota de telas não for aprovada, o público não terá essa possibilidade”, conclui Arthur Lins.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 10 de setembro de 2023.