Pela primeira vez, o Festival de Música da Paraíba vai homenagear um artista ainda em vida. Além de pagar tributos a Zé Marcolino (1930-1987), a 7ª edição do evento prestará reverência à Cátia de França. Aos 77 anos e em plena atividade, a cantora e compositora pessoense se mostra inquieta e em plena ebulição artística.
É apostando justamente na renovação de seu público que redescobriu a autora do álbum 20 palavras ao redor do sol, de 1979, e com o contato direto com novos talentos do estado, como os revelados pelo festival, que ela chega aos 50 anos de carreira anunciando um novo álbum para os próximos meses e consagrada como uma das maiores compositoras paraibanas.
A homenagem do Festival de Música da Paraíba vem cheio de simbolismos. “Acenos de aceitação a gente recebe do mundo inteiro, mas quando vem do lugar onde a gente nasceu, cresceu, de quem assistiu toda a minha trajetória, como tudo começou, com quem andou, filha de quem, o que é, o que leu, com quem conviveu... Isso me emociona. Eu me arrepio toda vez que falo. O coração do paraibano sempre bateu muito bem afinado, tem grandes artistas. E o festival é para trazer as digitais dos paraibanos, as digitais do nordestino”, considera Catarina Maria de França Carneiro, que já foi jurada do 2º Festival de Música da Paraíba, em 2019.
A relação com os festivais de música está no DNA da formação musical de Cátia de França. Depois de viajar pela Europa no final dos anos 1960 junto ao grupo folclórico da Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira, ela se dedicou a participar de concursos universitários e outros de grande porte por todo o Nordeste. Foi no 4º Festival Paraibano de MPB, em 1970, que a composição de ‘Mariana’, em parceria com o poeta Diógenes Brayner, levou o maior prêmio daquela edição, ocorrida no Teatro Santa Roza, em João Pessoa. “O festival traz o prêmio e traz o conhecimento, a divulgação. No festival, quem tem que mandar é a vontade do povo, e ninguém silencia a voz do povo, porque festival tem isso, é bom porque tem as torcidas. Tem o lado B e o lado A”.
Apesar de lembrar com entusiasmo desses tempos, até hoje Cátia confessa se sentir nervosa ao subir nos palcos para se apresentar. Quando fazia isso para defender suas canções, diante de uma plateia fervorosa, ela precisava recorrer a outros tipos de auxílios para vencer o medo da vaia. “Foi quando eu aprendi a beber. O meu zabumbeiro disse: ‘Menina, tu não precisa se lascar desse jeito. Faça como eu, todo artista toma um goró para enfrentar a vaia, para enfrentar uma multidão’. É porque, no festival, não são cinco ou 10 gatos pingados, não. No Astreia e no Clube Cabo Branco era até o teto de gente. E tome-lhe vaia e faixa, como se fosse campanha política. Como encarar isso? Por isso que todo mundo bebe e toma umas coisas para poder segurar. ‘Tome Dreher, porque ninguém tem dinheiro para tomar o uísque 12 anos’. Aí eu fiquei muito assanhada. Eu queria cantar o dia inteiro”, conta ela, aos risos.
Depois dessa fase participando de festivais, Cátia muda-se para o Rio de Janeiro, em 1972, onde integra as bandas de Zé Ramalho, Amelinha e Sivuca. Ela se destaca como a única mulher a compor, tocar e interpretar composições próprias em que misturava referências regionais como o baião a elementos do rock psicodélico e da cultura pop difundida pelos movimentos de contracultura. Mas uma característica de compor na época dos festivais persistiria em sua técnica de trabalho: a influência literária. “São os livros que me fazem engravidar. Eu faço uso das coisas dos outros, então tem muita coisa bonita que não é minha. Por exemplo, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Eduardo Galeano, Zé Lins…”, elenca a cantora e compositora.
Cátia de França tem uma maneira muito específica de escrever e não há ninguém que faça exatamente como ela faz. Ela costuma colocar uma frase inteira dentro de um compasso e dá uma dica pessoal para os novos compositores que concorrem no Festival de Música da Paraíba neste ano: não escrever inundado de amor. “Quando você se apaixona, troca as bolas, fica muito fragilizado. Não dá certo se você ficar fazendo coisa porque está apaixonado ou porque a lua está cheia. É bom amar, mas deixa o sujeito meio abestalhado. Então, a inspiração fica muito fútil. Se ficar revirando os olhinhos porque perdeu o amor ou porque está querendo conquistar alguém, vai perder tempo”.
Em seus trabalhos, a artista paraibana desenvolve uma música difícil de ser definida, sincopada pelo canto e pelo andamento rítmico no acento das frases melódicas. Um dom no qual ela devota toda a sua vida. “Tenho uma gratidão eterna a Deus porque eu não fui santinha o tempo todo. Eu bebi muito, comi muito e quando fui pro exame, está tudo Ok. Então foi ele que me deu um green card. Ele disse: ‘Vamos dar uma chance a neguinha. Ela viajou na maionese, achou que ser artista era fazer o que estava fazendo’. Mas eu acordei em tempo”.
E o tempo não assombra Cátia de França. “A internet me resgatou com ressurreição. Eu fui esnobada quando não existia internet”. Ela ainda não encara a ideia do fim porque a sua arte tem transcendido qualquer sentido de um epílogo antecipado. “Na minha cabeça, não termina, não. Termina não. Em casa, esse era um assunto que não se falava muito. Mas eu entregue isso a Deus. Eu quero que a coisa seja lembrada como uma pessoa positiva. Fazer o mundo rir, fazer o mundo dançar. Já é uma missão importante, né?”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 03 de março de 2024.