O terceiro e último dia do 1o Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba) foi marcado pela presença de mais de 15 influentes nomes da literatura em língua portuguesa em suas mesas temáticas, a exemplo de António Quino, José Luis Tavares e José Eduardo Agualusa. Ao longo do dia, cinco mesas discutiram questões concorrentes ao tema central, “Camões 500 Anos — Uma Nova Cidadania da Língua”. Além das mesas, que ocorreram na capela do Centro Cultural São Francisco, das 9h às 18h, o dia ainda contou com lançamentos de livros no pavilhão de entrada do evento, visita guiada à exposição fotográfica O Rosto de Camões — Dez Ideias para um Futuro Descolonizado, do artista visual português João Francisco Vilhena, e o show de encerramento dos paraibanos Sandra Belê e Chico César. “A feira é maravilhosa e o show foi lindo porque toquei na minha terra”, declarou Chico.
Dentre os inúmeros participantes do público, a veterinária Bianca Batista Lins, que só ouvia falar da Flip de Paraty, disse que, quando soube da FliParaíba, logo se interessou em comparecer. “Queria conhecer mais dos escritores paraibanos e tô achando ótima a feira de livros”, comentou.
Já Francisco Chaves, professor de História, afirmou que poder participar de um festival literário na Paraíba era um sonho antigo, tanto que aproveitou para levar o filho Lorenzo, de 10 anos. “Achei legal ficar junto com o meu pai ouvindo e gostei de vir pra cá. Gosto muito de ler e já escrevi até um livro no colégio”, disse Lorenzo.
O governador João Azevêdo esteve presente ao encerramento, ocasião em que entregou a premiação do Desafio Nota 1000, uma iniciativa da Secretaria de Estado da Educação (SEE) que selecionou as melhores redações de estudantes do ensino público estadual sobre os 500 anos de nascimento de Camões. Naná Garcez, diretora-presidente da EPC, destacou o êxito do evento. “Os diálogos entre os escritores, tanto os dos países de língua portuguesa quanto os nacionais, aconteceram com muita integração. Para os escritores que lançaram seus livros, foi maravilhoso, pela abertura de mercado, e a capela esteve cheia em quase todos os momentos do festival”, afirmou Naná.
Mesas temáticas
A sexta mesa do festival, intitulada “Superação e resiliência — Celebração em literatura: Resiliência e territorialidade”, reuniu o autor angolano António Quino, a paulistana Bianca Santana e Bruno Ribeiro, mineiro radicado em Campina Grande, a fim de discutirem como a língua portuguesa, marcada por um passado de colonização, pode ser reinterpretada e transformada em instrumento de resistência cultural e literária.
Bruno abriu a discussão compartilhando sua jornada pessoal com a literatura. “Carolina Maria de Jesus me mostrou que é possível fazer literatura com poucos recursos, criando imagens poderosas, como ao descrever a fome como algo amarelo”, destacou.
António Quino, complementou a análise de Bruno, ressaltando o papel da literatura na preservação de memórias coletivas e na superação de traumas históricos. “Nós somos utentes desta língua. Não interessa como a herdamos, mas a língua é nossa!”, pontuou.
Já Bianca Santana trouxe à discussão a perspectiva de gênero e raça na construção da linguagem: “Para mim importa pensar na violência da imposição de uma língua com a qual eu preciso contar histórias que foram historicamente silenciadas”.
Ainda pela manhã, o debate à mesa “Capacitação e empoderamento — A arte e a fotografia: Descolonizando pensamentos” foi composto pelo fotógrafo português João Francisco Vilhena, o artista visual paraibano Shiko e o escritor carioca Tom Farias. João, que, em sua exposição O Rosto de Camões, apresentou retratos de 10 pessoas de todas as nações que tem por língua materna o português, vestidos com a icônica gola de Camões e simbolizando a diversidade do português contemporâneo, destacou: “A arte deve ser interventiva e guiada pelo amor, sem exclusão de gênero, raça ou orientação sexual”.
Shiko destacou a sorte de ter tido uma profícua formação literária, incentivado por seu avô, que fora vaqueiro no Sertão: “A gente só se torna capaz de exercer a própria individualidade, o lugar que nos cabe na nossa sociedade, com o domínio da língua”.
A tarde começou com o debate temático “Herança e memória — Presenças e sabenças indígenas e africanas na literatura”, partilhado entre a indígena macuxi rondoniense Trudruá Dorrico e os professores paraibanos Elio Chaves Flores e Rinah Souto.
“Muito me instiga pensar mais sobre presença e menos sobre heranças”, ressaltou Rinah, convidando o público a refletir sobre uma série de equívocos de interpretação construídos por meio das relações coloniais de poder.
As reflexões de Rinah foram corroboradas pelo pensamento de Trudruá: “Vocês nunca vão abrir um livro de literatura indígena e ler o Brasil descoberto em 1500. Acho que começa por aí a nossa história e a nossa literatura, porque a literatura indígena não vai afirmar os pilares da colonização”.
A mesa “Diálogo e interculturalidade — Reinterpretação dos clássicos” foi formada pelos escritores paraibanos Bruno Gaudêncio e Débora Gil Pantaleão, além do cabo-verdiano José Luis Tavares. Débora buscou destacar o que havia de Portugal em sua poesia, admitindo, entre outras influências, traços de interculturalidade oriundos dos portugueses Florbela Espanca e Fernando Pessoa.
Bruno ilustrou a interculturalidade pela peculiaridade de estar em uma igreja barroca ouvindo os ecos da passagem de som de Chico César do lado de fora. Revelando um processo de antropofagia literária, José Luis Tavares afirmou transformar os autores portugueses para a singularidade de sua língua.
“As gramáticas não fazem as línguas naturais; elas descrevem o que existe na língua natural. Os dicionaristas não gostam, mas a língua é feita pelas nações, por gente que vive e sofre esse processo de transformação”, destacou o cabo-verdiano.
A última mesa, “Harmonia e sustentabilidade — Territórios da palavra, nossas histórias e identidades”, fechou os trabalhos com a presença dos escritores portugueses José Eduardo Agualusa, José Manuel Diogo e Rui Tavares. Rui, que também é político, incitou um mergulho histórico e filosófico acerca das transformações paradigmáticas do pensamento, mencionando o fenômeno da polarização política e suas implicações nefastas sobre a cultura contemporânea.
Agualusa continuou o debate, afirmando a produção de utopias por parte da literatura: “Eu não sei se a literatura tem uma função, mas acredito que os bons livros de ficção... um bom romance é aquele que nos traz alguma inquietação. Parece-me que, neste tempo que vivemos, resgatar utopias vale tanto para a literatura quanto para o mundo onde o Rui se move, na política”.
No encerramento da mesa, Naná Garcez participou da leitura pública de um manifesto com 10 ideias, fruto das mesas de debate ao longo do evento, propondo a cidadania da língua para um futuro descolonizado. “Reconhecemos a língua portuguesa como um patrimônio cultural vivo e em constante transformação [...] em cada comunidade que nela imprime seu sotaque, sua dor e sua alegria. Não há centro, não há margem, apenas o diálogo que desafia o racismo e constrói um novo pertencimento”, diz um dos pontos do manifesto.
A primeira edição do FliParaíba foi uma iniciativa do Governo do Estado, por meio da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC) e da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e em parceria com a Associação Portugal Brasil 200 anos (Apbra).
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 03 de dezembro de 2024.