Ele foi um dos fundadores, em 1996, do Cordão do Boitatá — grupo e tradicional bloco carnavalesco carioca —, toca na banda de Martinho da Vila e, a despeito da origem sambista, nutria paixão confessa pela cultura nordestina desde a infância. Com mais de 30 anos de carreira tocando ao lado de artistas os mais variados, o acordeonista, arranjador e compositor Kiko Horta afinou-se com músicos esmerados para lançar seu primeiro álbum solo, Sanfona Carioca. Produzido por Kiko, lançado pelo Selo Mestre Sala e gravado em uma noite de domingo no estúdio Fibra, o trabalho está nas plataformas de streaming.
Nas 10 faixas que compõem Sanfona Carioca, o artista incursiona nos terreiros do samba, choro, gafieira e bossa. Para tanto, conta com um quarteto formado por Ivan Machado (contrabaixo elétrico), Luis Filipe de Lima (violão de sete cordas e produção musical), Luis Barcelos (bandolim) e Marcos Suzano (percussão).
Equilibrando o chorar dos conterrâneos — em canções como “Deixe o breque pra mim” (composta por Altamiro Carrilho, 1957) e “O meu lugar” (de Arlindo Cruz e Mauro Diniz, 2006) — com aqueles do “norte”, a exemplo de “Catita” (por K-Chimbinho, 1981) e “Chorinho pro miudinho” (de Dominguinhos, 1979), o álbum resulta em requintado brilho, no qual o timbrado do fole dá mostras de entrosamento orgânico. Duas canções autorais completam o repertório do disco — a emotiva “Recomeço” e a tributária “Forró transcendental”.
Raízes distais
Além do pai Luiz Paulo Horta (1943–2013) — que foi jornalista, crítico de música erudita, sétimo ocupante da cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras e detentor de ouvido absoluto para os sons —, Kiko teve uma mãe (Maria Cecília) professora de música e pianista, bem como irmãs que seguiram a mesma trilha. Sua avó era cearense e o avô, sergipano. Diante de um lar tomado por acordes e dos distais ascendentes nordestinos, o destino musical de Kiko não poderia ser outro.
“Meu pai escrevia sobre música clássica, tocava piano e era muito bom de ouvido”, conta, de Lisboa, o sanfoneiro, em meio à turnê ao lado de Martinho. “A primeira referência musical que tenho é do Luiz Gonzaga, de ‘Karolina com K’. Ana Maria Bezerra, que era pernambucana e trabalhava lá em casa, tomava conta de mim quando minha mãe ia trabalhar, colocava Luiz Gonzaga pra ouvir. Sempre ouvia esse repertório, de Dominguinhos e outros sanfoneiros. E eu usava o disco do Luiz pra não ir pra escola — ela sempre dizia: ‘Assim vai furar o disco’”.
Certa vez, o bruxo Hermeto Pascoal (1936–2025) foi tocar no Rio de Janeiro. Horta, que já acompanhava a produção do mestre Sivuca (1930–2006), acabou se encantando com os oito baixos e resolveu tomar a decisão de emular os feitiços sonoros dos ídolos, que tanto lhe deslumbravam os ouvidos. Decidiu estudar piano por volta dos 14 anos.
Na adolescência, passou a subir o Morro Dona Marta para tocar jongo nas rodas de samba e choro. Um dia Martinho da Vila precisou de um sanfona e Kiko foi convocado. “Martinho foi um cara que sempre me deu muito destaque”, ele afirma.
As rodas de samba e de festa no Rio ainda seriam muitas, envolto pelo universo da sanfona, tanto em ambientes onde é comumente utilizada quanto em outros contextos. A propósito, o título do álbum, Sanfona Carioca, longe de uma contradição em termos, apetece em Kiko a convicção do timbre universal do fole.
“Não existe uma sanfona carioca que não converse com outras sanfonas. O Rio de Janeiro não tem a tradição de sanfona como outras regiões. No final da década de 1940, tínhamos o Luiz estourando nas rádios a nível nacional. Na mesma época, tinha o Chiquinho do Acordeon [1928–1993] no Sul, tocando com orquestra com Radamés [Gnattali]. Vai chegando Hermeto, Dominguinhos [1941–2013], todos vieram tocar no Rio”.
Entre samba e choro sambado, o forró é mesmo um gênero fundamental à formação de Kiko Horta. Com o Cordão do Boitatá, Kiko lançou dois álbuns — Dos Pés à Cabeça – Na Praça e Dos Pés à Cabeça – Na Rua —, ambos de 2024, e, para além dos projetos pessoais, fez-se presente em inúmeros discos de Martinho da Vila e também de Edu Lobo.
Recentemente, o acordeonista iniciou um doutorado na UniRio, onde será orientado pelo pianista e pesquisador norte-americano Cliff Korman, a fim de aprofundar-se nos conhecimentos acerca da improvisação na sanfona, junto aos gêneros forró, samba e choro.
“É álbum solo, mas tocado por um quinteto. Meu objetivo é colocar a sanfona em destaque, por gêneros que ela não é usualmente ouvida”, diz ele. “Estou superfeliz. O álbum teve matérias muito boas, uma receptividade muito boa. O Boitatá também comemora 30 anos de cortejo, de festas de rua. Fico feliz de ter feito os discos”, atesta, anunciando shows de lançamento de Sanfona Carioca para o ano que vem.
Cânticos Negros
Kiko Horta e Luis Filipe de Lima estão junto também na direção musical e arranjos do álbum Orin Dudu – Cânticos Negros, que fez sete cantigas de candomblé baixarem no mundo fonográfico no último dia 20 de novembro — oportuno ao Dia da Consciência Negra.
O disco é fruto de uma pesquisa realizada em sete casas da religião de matriz africana no Rio de Janeiro e municípios circunvizinhos. Entre músicas como “Cantiga de Oxum — Moiô Moiô”, e “Cantiga de Iemanjá — Iemanjareô”, atabaques e vozes como as do Grupo Vocal Equale e coro formado pela Ekédi Flávia Berton, Egbômi Marlene de Oxum e Kiko Horta, do Ilê Axé Egi Omim, e pela cantora Mariana Baltar, untam-se a instrumentos de sopro, cordas e piano em arranjos imprevistos.
Instrumentistas de renome da música brasileira participaram da proposta, tais como: Carlos Malta (saxofones, clarone e pífanos), Silvério Pontes (trompete e flugelhorn), Gilson Santos (trompete), Eduardo Neves (flauta), Cláudio Jorge de Barros (guitarra), Ivan Machado (baixo elétrico), Luis Barcelos (bandolim), Guto Wirtti (baixo acústico), Thiago Osório (tuba e trombone), Eduardo de Almeida Prado (trompa), Alexandre Romanazzi (flautas em dó e sol), Thiago Queiroz (sax alto e barítono), Wanderson Martins (cavaquinho), Paulino Dias (percussão), além de Luís Filipe de Lima (violão de sete cordas) e Kiko Horta (piano).
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 2 de dezembro de 2025.
