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Um marco da Nona Arte na Paraíba

publicado: 05/06/2023 09h38, última modificação: 05/06/2023 09h38
Lançada pela Cepe, obra mostra sobrados, escolas e ruas que foram frequentados pela escritora na infância e adolescência
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Deodato Taumaturgo Borges na visão de Mike Deodato Jr., o filho e “irmão” que seguiu os passos do pai - Imagens: Mike Deodato Jr./Divulgação
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O Flama ambo na visão de Mike Deodato Jr. - Imagens: Mike Deodato Jr./Divulgação
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Capa da revista ‘As aventuras do Flama’, feita com impressão “a quente” - Imagem: Reprodução
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Primeira página da revista ‘As aventuras do Flama' - Imagem: Reprodução
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Mike Deodato Jr., premiado quadrinista, produzindo - Foto: Edson Matos
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Mike Deodato Jr. lendo o gibi feito pelo pai - Foto: Acervo pessoal
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por Joel Cavalcanti*

Uma orquestração dramática com explosões sonoras e atmosfera épica marcavam o início de cada programa no rádio. Os acordes profundos e graves eram seguidos pela voz empolada com “erre dobrado”, que ecoava: “As aventuras do Flama. O mais empolgante seriado já escrito para o rádio. A luta incansável do homem em defesa da lei e da justiça. Uma novela original de Deodato Borges”. Era o chamado para que jovens e crianças se reuníssem para ouvir a novela policial de tanto sucesso que resultou na primeira publicação de uma revista em quadrinhos no Nordeste, em 1963. O ano coincide com o nascimento do filho de Deodato Borges, o premiado quadrinista Mike Deodato Jr. Em 2023, ambos completam 60 anos de influência mútua e de ligação profunda com a memória paraibana da Nona Arte.

Nascidos do mesmo criador, Deodato Jr. e Flama cresceram juntos. Até por volta dos seis anos de idade, e sem conseguir dimensionar o sucesso que seu pai fazia desde Campina Grande, Deodato Jr. tinha uma carteirinha do Clube do Fama e dividia uma admiração e estranhamento pelo trabalho que seu pai fazia. “Achava estranho pelo modo de interpretar da época. Primeiro, porque painho não era um bom ator. Mas era o jeito de interpretar que era todo formal. Era algo estranho para ouvir”, conta Deodato Jr. O jornalista e radialista Deodato Borges já desenhava desde os 15 ou 16 anos de idade. A vida inteira quis ser quadrinista, mas nunca pode. A revista só veio a sair quando ele era diretor de rádio e tinha acesso direto a anunciantes que poderiam patrocinar o projeto pioneiro. Um dos primeiros super-heróis brasileiros investigava crimes com apoio da polícia.

Os 1.500 exemplares da revista não chegaram a ir às bancas, sendo oferecidos nas portas das rádios. “Segundo ele, durou três números, mas eu nunca vi mais que o número um. Deve ter sobrado muitas edições e vendido muito pouco. Até hoje, por exemplo, eu tenho exemplares da minha primeira revista em quadrinhos aqui guardados”, compara Deodato Jr. Flama vinha na esteira do sucesso nacional Jerônimo, o herói do Sertão e do norte-americano The Spirit, de Eisner. Seguindo o programa transmitido diariamente pela Rádio Borborema, que estreou dois anos antes, a HQ As Aventuras do Flama tinha 40 páginas e sistema de impressão “à quente”, muito mais caras. O roteiro explorava um estilo de heróis da época, resolvendo casos de injustiças contra os indefesos em uma abordagem tipicamente maniqueísta, numa divisão entre mocinhos e vilões. Sem superpoderes, Flama era um vigilante urbano muito forte, de identidade secreta e que vestia máscara, malha colante e capa, além de carregar revólveres.

Em um contexto histórico internacional marcado pela Guerra do Vietnã, dos protestos na França em Maio de 1968 e o movimento contra o apartheid na África do Sul, o mundo que Flama não chegou a conhecer estava muito mais complexo e cheio de outras matizes. Nos comics dos EUA, a partir da década de 1970, o Batman, de Dennis O’Neil e Neal Adams, começava a apresentar os problemas do mundo real, como drogas e racismo. No Brasil, o fim da ditadura civil militar também foi um divisor importante para as histórias em quadrinhos. Foi neste período que Mike Deodato Jr. começou a dar seguimento profissional ao ofício de seu pai. Em um período no qual todo mundo queria exercer a liberdade há tempos cerceada, ganhava espaço o exagero nos gráficos e a hipersexualização das HQs, como Guerreiras de Jade.

Deodato Jr. começou com um estilo bem realista, mas já no início dos anos 1990, com o surgimento da Image Comics, criada por artistas dissidentes da Marvel, as coisas foram mudando de contorno. “Eles tiveram uma influência muito forte no meu estilo e fiquei completamente obcecado. Era uma coisa bem estilizada e resolvi trazer isso para o meu estilo”, diz o quadrinista que colaborou por muitos anos desenhando os super-heróis da Marvel e DC, como Homem-Aranha, Os Vingadores, X-Men, Mulher-Maravilha e Batman. “A partir dos anos 2000, o realismo começou a voltar novamente. Comecei a me fixar no que fazia antes, mas misturando com o que havia aprendido com a Image. Ficou um desenho hiperrealista, mas com movimento e ação. O que aprendi desse movimento passei para o meu estilo fotorrealista, e virou o que tenho hoje”.

No ano passado, Deodato Jr. decidiu voltar às origens e produzir quadrinhos autorais. Como resultado, venceu o Prêmio Eisner, considerado “o Oscar das histórias em quadrinhos”, na categoria Melhor Série de Humor por seu trabalho na obra Nem todo robô, escrita por Mark Russell. Este ano, ele deve fazer um trabalho pontual com a DC, desenhando as novas edições de The Flash. Ele aproveita os 60 anos – completados no dia 23 de maio – para analisar essa trajetória pessoal. “Deixando a modéstia de lado, foi uma carreira vitoriosa. Foi um ciclo completo. Passei mais de 20 anos só fazendo super-heróis. Depois resolvi largar tudo para fazer quadrinho autoral, que é a melhor coisa que existe”.

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Mike Deodato Jr., premiado quadrinista, produzindo - Foto: Edson Matos

De vez em quando ainda esbarrando nos arquivos de áudio do programa em que pode ouvir a voz grave de seu pai, Deodato Jr. só não conseguiu em sua carreira dar seguimento ao personagem que deu fama e prestígio ao Deodato Sênior. O projeto, em parceria com Rodrigo Salem, já estava quase pronto para começar, com os primeiros traços a lápis desenhados, mas tudo mudou depois da morte do pai, em 2014. “Não tinha mais condições de fazer. É uma coisa que me deixa sem condições psicológicas de continuar com essa obra. Tentei voltar, mas me sentia muito triste toda vez que tentava fazer. Como não tinha condições, resolvi licenciar. Pelo menos, é uma maneira do personagem continuar tendo vida”.

Com a aprovação entusiasmada de Deodato Jr. para o projeto O Flama & a Bússola do Destino, assinado por outros autores, o personagem com quem ele divide o ano de nascimento está atualizado para o público, numa linguagem mais contemporânea. A HQ mantém os elementos de uma típica história de detetives, inspirado nas antigas radionovelas e instiga o leitor por subtramas em busca de montar um quebra-cabeça em torno da verdadeira identidade jamais revelada do Flama. “Gostei da direção que eles deram para o personagem. Pelo que vi, o desenho está fantástico. Painho era muito talentoso. Um contador de histórias excelente. Foi a partir dele que eu escolhi me tornar desenhista. Cresci vendo ele como super-herói e acabei também desenhando super-heróis por causa dele”, conclui Mike Deodato Jr.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 4 de junho de 2023.