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Tributo

Um mestre da identidade sertaneja

publicado: 05/02/2024 09h45, última modificação: 05/02/2024 09h45
Conheça a obra de Zé Marcolino, o grande homenageado da nova edição do Festival de Música da Paraíba
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Nascido onde atualmente está localizado o município de Sumé (PB), Marcolino ajudou a edificar a identidade sertaneja nordestina, foi parceiro de diversas músicas com Luiz Gonzaga, a exemplo da clássica ‘Numa Sala de Reboco’, além de ser um imbatível contador de causos - Ilustração: Tônio

por Joel Cavalcanti*

Zé Marcolino era poeta, carpinteiro, barbeiro e vaqueiro. O maior sonho dele, porém, era ser parceiro de Luiz Gonzaga. Só o “Rei do Baião” poderia levar muito além as suas canções que já animavam bailes e festas na região de Várzea Paraíba, distrito de São Tomé, onde hoje está localizado o município de Sumé. Para alcançar o sonho e ter seu talento reconhecido além do Cariri, José Marcolino Alves escrevia cartas para Gonzaga, sem nunca ter obtido qualquer resposta. Depois de um primeiro encontro casual marcado pelo desinteresse do Velho Lua, Zé Marcolino conseguiu não apenas ser gravado por seu ídolo, mas foi levado com ele para morar no Rio de Janeiro, produzir um álbum juntos e viajar em turnê pelo país. Dessa ligação, surgiu uma obra que até hoje ilustra o imaginário da identidade sertaneja nordestina.

É para reverenciar o cancioneiro de Zé Marcolino, imortalizado em interpretações próprias e de tantos outros cantores, que o 7º Festival de Música da Paraíba homenageia o autor de ‘Numa sala de reboco’, ‘Serrote Agudo’, ‘Quero Chá’, ‘Pássaro carão’, ‘Matuto aperreado’, dentre outros. As inscrições para o festival serão abertas na próxima terça-feira (dia 6) e seguem até o dia 6 de março, com as duas primeiras eliminatórias sendo realizadas na cidade de Sumé, onde serão apresentadas as 30 músicas selecionadas. A final está marcada para o dia 8 de junho, em João Pessoa, onde serão distribuídos mais de R$ 30 mil em premiações no evento promovido pelo Governo do Estado por meio da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), Fundação Espaço Cultural (Funesc) e Secretaria de Comunicação (Secom). Tudo para reverenciar o nome que virou sinônimo de São João.

Onde tem uma sanfona, um triângulo e uma zabumba, tem um cantador que, em algum momento, vai se lembrar de ‘Numa Sala de Reboco’. Mas para chegar em um de seus maiores sucessos, Gonzaga pediu para Zé Marcolino apresentar algumas outras canções. A primeira foi ‘Sertão do Piancó’, uma resposta à música gravada por Jackson do Pandeiro sobre o Sertão do Moxotó. Assim que terminou, Luiz Gonzaga perguntou quantas ele lhe daria pra levar consigo, e Marcolino mostrou ainda ‘Pássaro carão’ e ‘Serrote Agudo’. Luiz Gonzaga levou mais que as músicas, levou Marcolino para o Rio de Janeiro.

Essa história é contada em detalhes na autobiografia Vida, Versos e Viola (Fundarpe, 1990). “Para Zé Marcolino, a glória seria ser gravado por Lua. Tanto que ele cedeu as parcerias em músicas que já estavam prontas antes de conhecer Gonzagão. Ele não procurava fama. Era por satisfação própria”, defende o jornalista e crítico musical paraibano radicado no Recife, José Teles. “Se não fosse gravada por Gonzaga, a música de Marcolino já teria sido esquecida. O mesmo teria acontecido com a música de outros autores gravados por Lua. Gonzagão foi um grande curador da música nordestina”, acrescenta o especialista. Com a parceria formada, Luiz Gonzaga grava pela RCA, em 1962, o LP Véio Macho. Das 12 faixas, metade era assinada por Marcolino.

“Marcolino fazia uma música atávica. Com muito da poesia oral daquela região rica em repentistas, glosadores, e sabia criar grandes melodias para suas letras”, define José Teles. O único álbum a registrar essas características do paraibano em sua própria voz foi gravado pela Rozenblit, em 1983, no LP Sala de Reboco, em que Zé Marcolino foi acompanhado pelo Quinteto Violado, de Pernambuco. Um dos fundadores do grupo e único paraibano do quinteto pernambucano, Marcelo Melo já se encontrava com Zé Marcolino durante viagens pelo interior.

“Gonzaga dizia que Marcolino tinha uma voz muito grave, que não dava pra cantar. E a gente achava que não. Ele era um cara que tinha aquelas melodias que normalmente tem os cantadores e repentistas, mas embora ele tocasse muito pouco, tinha uma musicalidade vocal muito boa e muito característica do Sertão, do sertanejo. Ele não tinha conhecimento musical. Fazia a coisa intuitivamente, mas com muita certeza e era muito afinado, ele era um cara muito preciso na afinação”, define o campinense Marcelo Melo, responsável pelos vocais, violão e viola do Quinteto Violado. A parceria entre o grupo e Marcolino ficou registrada também na participação de ambos no programa Som Brasil, comandado por Rolando Boldrin, na Rede Globo.

Além de suas características artísticas, Zé Marcolino era conhecido por ser um imbatível contador de causos. “Ele tinha um jeito de contar as histórias e fazer com um humor bem típico sertanejo, aquela coisa que você conta com muita seriedade e a gente, quando vê, está morrendo de rir do jeito que ele fala. Ele guardava as características do comportamento, do imaginário sertanejo, com a qualidade que Gonzaga também tinha”, conta Melo. A parceria de Marcolino e Gonzaga, porém, não durou tanto assim. Depois de participar da divulgação do disco Véio Macho, em uma longa turnê que partiu do Sul do país, Zé Marcolino se aproveitou quando eles estavam no Crato realizando o último show para pegar um ônibus com destino a Campina Grande e não voltou mais ao Rio.

Depois de tantos anos tentando ser parceiro de Gonzaga, esse é o traço na biografia de Zé Marcolino que mais intriga José Teles. “O fato de ele ter tido a chance de se fixar no Rio apadrinhado por Luiz Gonzaga, e decidir voltar pro Sertão da Paraíba, onde morou até a morte. Dizem que houve um desentendimento no Rio entre ele e Gonzaga, mas não sei se é verdade”, especula o crítico. Teles aponta, porém, que esse desejo já estava expressado no xote ‘Matuto Aperreado’, gravado por Gonzaga. “Fico doido com tanta fala de gente / e a zuada de automóvel a me assustar / se na rua vou fazer um cruzamento / tenho medo, eu num posso atravessar / desse jeito, eu sou franco em dizer / mas um dia eu aqui não posso mais ficar”.

Por força de uma sina trágica, Zé Marcolino viria a morrer justamente em um acidente de carro, em 1987, quando uma vaca cruzou a pista no município de Carnaíba (PE). Uma perda sentida na cultura popular nordestina, que teima em não ter o legado de Marcolino apagado. “Ele e muitos autores do passado correm o perigo do esquecimento porque as editoras que autorizam a liberação das músicas que estão no seu catálogo cobram muito caro, e isso inviabiliza as regravações”, explica Teles. Na memória de quem conviveu com Zé Marcolino ou foi influenciado por sua obra, o que resiste são os elementos que criou no imaginário que representa a identidade sertaneja nordestina.

“Ele era um camarada que retratava dentro da sua poesia a ambiência, a ecologia, o comportamento brincalhão satírico do homem nordestino com muita qualidade. Marcolino se inspirava também nos elementos da natureza, nos cantos dos pássaros, no comportamento do fura-barreira, do pássaro que fica em cima da estaca, fazendo a tapia para o menino que atira nele com a baliadeira. Ele tinha essas características, o pássaro carão, que dá sinais à natureza através do seu canto. Tenho por Marcolino um respeito muito grande à obra dele por essa qualidade fantástica que ele tinha”, finaliza Marcelo Melo.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 04 de fevereiro de 2024.