Notícias

Em cartaz

Um modernista pelos “rincões” do país

publicado: 09/04/2025 09h43, última modificação: 09/04/2025 09h46
Diretor Murilo Salles revela como “entrou na cabeça” de Mário de Andrade por meio do filme “O Turista Aprendiz”
3 Mário de Andrade discursa em tupi no Palácio Rio Negro.jpg

Em cena do longa, Andrade discursa em tupi no Palácio Rio Negro, sede do governo do Amazonas | Foto: Divulgação/Cinema Brasil Digital

por Esmejoano Lincol*

Pode escrever aí: eu sou cineasta graças a minha mãe, Yedda Navarro, uma paraibana”, disse o realizador e fotógrafo fluminense Murilo Salles à reportagem de A União, ao falar, inicialmente, sobre seu novo filme — Mário de Andrade, o Turista Aprendiz. Baseado em livro homônimo publicado postumamente, com base nos diários do famoso escritor e ícone modernista, o longa-metragem está em cartaz em João Pessoa. Mas, além de comentar os bastidores desse projeto, o diretor compartilhou as suas impressões sobre a carreira, sobre o cinema brasileiro e, claro, sobre o seu passado ligado à Paraíba.

O Turista Aprendiz ganhou nova edição literária no ano passado, pela Tinta da China Brasil, mantendo o divertido e autoexplicativo subtítulo Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até Dizer Chega. O registro remonta às experiências de Andrade em sua extensa digressão pelos chamados “rincões” do país, no interior das regiões Norte e Nordeste, a partir de 1927. Passou, inclusive, pela Paraíba, pesquisando e coletando informações sobre manifestações populares, como o coco (ver matéria da página 11). Suas anotações permaneceram com alcance limitado até a sua morte, em 1945 — demandaria mais duas décadas para que a primeira versão do diário fosse publicada.

Murilo Salles, que também assina o roteiro da versão cinematográfica de O Turista Aprendiz, deteve-se apenas no início da jornada, quando Mário navegou pelos rios Amazonas e Madeira, a bordo de um vaticano (embarcação em formato de gaiola); a comitiva havia sido montada pela paulista Olívia Guedes Penteado, incentivadora do movimento modernista. “Ele foi revistar essas anotações em 1943. Mas, depois de 16 anos, você perde muito a memória do que viveu, apesar de ser muito detalhista, em tudo. Então, eu pensei: ‘Pô, que mentira, quase tudo aquilo é uma invenção, naturalmente fabulada’. Como tudo aquilo se passa na cabeça dele, quis que o filme fosse do mesmo jeito”, explicou o realizador.

Sensorialidade

A partir dessa impressão como leitor, Salles concebeu um filme que oscila entre sequências mais realistas, a exemplo do discurso que o escritor fez à tripulação do vaticano (destrinchando seu interesse pessoal na viagem), e outras mais experimentais ou surrealistas, como quando o passeio de uma borboleta entre os viajantes é encenado por uma mulher, que faz as vezes do inseto (ela “corre” entre os presentes no barco). “Tem uma cena, no filme, que Mário está sentado numa espreguiçadeira, lendo um livro, e há uma paisagem atrás dele. Enquanto isso, ele comenta que estava muito envolvido, feliz... ele escreveu para sistematizar essa questão da sensorialidade na narrativa, que eu também tenho”, assinala.

O filme foi rodado em 2023, primeiro no próprio Amazonas e depois em estúdio. Mário de Andrade é interpretado pelo ator Rodrigo Mercadante, que reproduz, com recursos de maquiagem e com a própria imagem, a figura marcante do autor de Macunaíma — o processo de escrita do livro, a propósito, também ganha espaço no filme. O tal “herói sem caráter” ganharia a sua primeira edição em 1928. “E olha que nem é tão parecido. Mário era enorme, espalhafatoso. Já Rodrigo é pequenininho, superintimista. Mas ele conta com uma vivência enorme: tem Mário na alma dele, também por tê-lo interpretado em outras ocasiões. Um ator global iria fazer esse papel; quando vi o vídeo de Rodrigo, falei: ‘Tchau, TV Globo”, brinca o cineasta.

A adaptação de Macunaíma para o cinema, em 1969, pelas mãos de Joaquim Pedro de Andrade, foi um dos primeiros contatos imersivos de Murilo Salles com a obra de Mário de Andrade; ele viu o filme numa pré-estreia, promovida pela sua então professora Heloísa Buarque de Holanda (falecida em março). O filme foi marcante para a geração e seguiu no imaginário do artista na contemporaneidade, assim como o texto original. “Mário olhou o Brasil e eu olho o Mário. Estamos nessa luta, esperando seduzir as novas gerações com a história de um cara que passou a vida pensando o país da forma mais nobre e grandiosa possível, ao contrário da imbecilidade dominante das análises atuais — idiotas, superficiais, ‘fakenewsadas’”, projeta.

Descendente de Navarro

Prestes a completar 75 anos (em outubro), Murilo rememora que o audiovisual o arrebatou ainda na adolescência, num ano emblemático para a história do país — 1964. Em meio ao Golpe Militar que instaurou a Ditadura no Brasil, o diretor teve contato com clássicos — dois deles, Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha) e O Desprezo (de Jean-Luc Godard). “O cinema era pensamento, era posicionamento político e estético. Acho inclusive que, na arte, o cinema é onde somos melhores. Quando veio o AI-5, eu cursava a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dez anos depois, eu comemorei meu aniversário, com bolo e tudo, no set de Dona Flor e Seus Dois Maridos, como diretor de fotografia”, evoca, sobre o início da carreira.

Murilo Salles acompanha com afinco o circuito de produção e exibição fora do Rio de Janeiro — ouve com alegria a notícia de que o Cine Bangüê, na capital paraibana, reabriu suas portas neste mês, após uma paralisação programada. Mas, como indicamos no início da matéria, a proximidade do realizador com a Paraíba tem raízes ancestrais. “Meu pai era jornalista e minha mãe, Yedda, era professora de história da arte: era filha de Alceu, irmão de Antenor Navarro [interventor do estado, em 1930]. Foi ela quem me botou na fotografia e me mandou ler Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e esculpiu aquele garoto carioca. Fui algumas vezes a João Pessoa, mas menos do que gostaria”, lamenta.

Celebrando o atual momento do cinema nacional, Murilo cita como crucial a consagração do filme Ainda Estou Aqui no Oscar (“do grande Walter Salles, o meu ‘primo pobre’”, ele brinca: apesar da coincidência dos sobrenomes, eles não são parentes). Todavia, o realizador aponta que as políticas de produção e fomento do audiovisual brasileiro devem se ater à cadeia como um todo. “Isso não pode ser ‘filme a filme’: seria a morte do cinema no Brasil. Um dos nossos melhores momentos foi na época da Embrafilme, com o qual produzi meu primeiro longa-metragem ficcional como diretor, Nunca Fomos Tão Felizes [1984]. Agora é preciso uma política pública internacional, interligada”, conclui.

Mário de Andrade esteve na Paraíba por duas vezes

Foto do próprio Andrade da Igreja de São Francisco | Foto: Reprodução/IEB

A verve desbravadora e inquieta de Mário de Andrade trouxe-lhe à Paraíba em, pelo menos, duas ocasiões. Essas e outras visitas aos estados do Norte e do Nordeste resultaram em registros distintos e importantes, publicados postumamente. O primeiro permaneceu adormecido por quase 50 anos até ganhar a sua primeira edição, em 1976 — O Turista Aprendiz, que remonta à primeira passagem do modernista por municípios paraibanos, ocorrida no primeiro semestre de 1929, ocasião em que encontrou-se com outras figuras históricas, como José Américo de Almeida, antes deste tornar-se governador do estado, e Silvino Olavo, poeta de Esperança.

No diário de 28 de janeiro daquele ano, fez menção ao seu decurso pelo Litoral Norte do estado: “Mamanguape tem três horas diferentes. A oficial, a solar e a de Rio Tinto. Esta é a cidade progressista, com a fábrica de fiação Comp. Rio Tinto dos Lundgren, espertalhões para fazer trabalhar mais os operários”. Um dia depois, Mário relatou a sua visita ao Jornal A União e o registro do evento, dado pelo mesmo veículo oficial do estado, numa edição posterior.

O segundo livro que retrata os “passeios” de Andrade pelo país, no fim dos anos 1920, foi editado pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), em 2022, e dá conta das imagens capturadas pelo modernista e pelos colegas que encontrava pelo caminho: Viagem ao Nordeste Brasileiro 1928–29 reúne um arquivo precioso de fotografias, elaborado por Mário, incluindo a igreja matriz de Mamanguape e a Igreja de São Francisco, em João Pessoa — ambas na Paraíba.

Em uma segunda viagem ao Nordeste, em meados de 1938, Mário de Andrade esteve a serviço da Missão de Pesquisas Folclóricas, expedição idealizada por ele, sob organização do Departamento de Cultura do Governo de São Paulo. Dessa vez, o registro não foi apenas por escrito: munido de câmera e de equipamento de som, o autor e a sua equipe realizaram filmagens de diversos movimentos culturais da região. Mais uma vez, na Paraíba, Mário capturou folguedos populares de municípios como Baía da Traição e Pombal. Em 2006, o SescSP recuperou áudios coletados pela missão e lançou uma compilação deles, numa caixa com seis CDs: as faixas de artistas populares paraibanos ocupam quatro mídias.

O jurista e escritor paraibano Francisco Gil Messias afirma que a vinda de Mário à Paraíba foi extrema relevância, tanto para o estado quanto para a própria carreira do modernista. De um lado, a visita deu visibilidade à cultura local e permitiu que esse registro fosse redescoberto e analisado, anos depois. Por outro lado, forneceu ferramentas a Mário para a produção de mais conhecimento em torno do que viu por aqui. “O Brasil nunca foi somente Rio de Janeiro ou São Paulo. O país também é feito de João Pessoa, de Catolé do Rocha... Essa colonização cultural que foi combatida por Mário precisa ser revista ainda hoje, para mostrarmos que há vida cultural rica em todas as regiões”, conclui Gil Messias.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 09 de abril de 2025.