A passagem do tempo é o elemento substancial que dimensiona a narrativa de uma crônica. Ela captura os intervalos de um presente instante enquanto reflete a eterna transitoriedade da existência. “Tal como atravessa o homem, as suas ações e inventos, a vida mesma”, como afirma o jornalista e escritor Gonzaga Rodrigues, que completa 90 anos na próxima quarta-feira (dia 21). De tanto se notabilizar como uma testemunha atenta dos momentos fugidios, Gonzaga transcende a própria ideia de cronologia. “O olhar que o burocrata e o empregado fixam no relógio que amarram no próprio pulso, e que o prendem a seus afazeres, não é o mesmo olhar fixado pelo cronista, cujo relógio é o que pulsa em nossos corações”, defende ele.
Presente, passado e futuro. Nas páginas de um jornal, convivem as diversas dimensões temporais que servem a urgência de um dia. As crônicas de Gonzaga Rodrigues continuam a cumprir a função de ser um resgate do tempo, mas agora estão resguardadas nas páginas do livro Com os olhos no chão (MVC/Forma, 240 páginas, R$ 50), que ele lança amanhã, às 17h30, na Academia Paraibana de Letras (APL), no Centro de João Pessoa. A obra, com ilustração de Flavio Tavares, contém 102 crônicas, integrando uma seleção composta de textos de 1970 a 2022, e cobre mais de 50 anos de exercício literário. Com editoria de Juca Pontes (1958-2023), a publicação não obedece a temas ou a ordens cronológicas. Boa parte dos textos é resgatada de obras anteriores, mas a maioria é inédita em livro. As crônicas foram originalmente publicadas em A União e nos jornais O Norte, Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba.
“Tem a crônica de 1954, o portal do Clube dos Diários (sede central do Cabo Branco) levando a indagar-me ‘quando poderei entrar aí, mexer nas pedras de xadrez, participar da roda desses homens, ser chamado pelo nome?’. E tem a crônica de hoje, a bela sede fechada, aqueles personagens recolhidos ao porão escuro do tempo. Que significa nada para o rapaz informático ou não de hoje, e muito, quase tudo, para mim, a quem só resta curtir a sua saudade à porta da igreja. E que igreja, a da Misericórdia!’”, descreve Gonzaga. Para realizar esse recorte, ele releu dezenas de vezes e em momentos diferentes os seus antigos textos. Em meio século de produção, o número de crônicas pode chegar a cinco mil. O que pesou para definir o que entraria para o livro é o que o escritor descreve como “a ânsia ou a angústia literária”.
“Em nenhuma dessas leituras vi grande coisa em republicá-las. O que passou, passou deveria ser o título do livro. Mas terminei achando que não deveria negar a mim mesmo. Por mais que eu tenha pretendido, não fui capaz de fazer melhor. E estão aí”, diz o imortal, ocupante da cadeira 37 da APL. A seleção, que é a última que ele pretende fazer, recebeu o nome de Com os olhos no chão porque é sobre os limites da Paraíba que estão as fronteiras espaciais das crônicas de Gonzaga, que jamais saiu de sua terra. Ele nunca tirou os olhos dos lugares por onde passou. Com textos sobre Alagoa Nova, sua cidade natal, e sobre Campina Grande, o destaque maior mesmo é para a capital paraibana, sua “cidade pessoal”. Que é onde o cidadão e a crônica se confundem. O livro explora bastante os flagrantes por esses locais, por onde ele depreende um olhar social e nostálgico e o de testemunha e crítico de episódios políticos.
Gonzaga Rodrigues sonhava em ser romancista. Queria escrever obras parecidas com O Cortiço, de Aluísio Azevedo, Os donos do orvalho, do haitiano Jacques Roumain, e Pureza, romance lírico de Zé Lins do Rego. Mas se desenganou do romance para se resignar na crônica. “E crônicas do meu lugar, crônica localizada que, para ser lida fora daqui precisaria que o leitor conhecesse pessoalmente Lindalva da Torre, Nequinho Pintor e Ozildo Mesquita. O leitor precisa conhecer minha cidade, meu personagem e meu jeito de contar para poder me ler”, afirma Gonzaga. É através do lirismo de sua construção literária que ele arquiteta João Pessoa. A imagem da cidade é criada com afeto e respeito pela terra que escolheu viver ainda muito jovem. Apreço pelo povo, história, cultura e espaços físicos que já estavam demonstrados em publicações como Notas do meu lugar (1978) e Filipeia e outras saudades (1988).
Conhecedor profundo do ser humano, quem narra a crônica é o seu autor, e tudo o que ele escreve de forma subjetiva parece ter a força documental dos fatos. Mas a fonte que conduz tudo isso é a de sua própria memória. “Mesmo nas primeiras crônicas fui mais do passado do que do presente. Não sei dizer por quê. (...) A memória, por mais que me lembre a luz cortada, a sexta-feira sem vale no jornal, as perdas e danos do dia a dia, é o meu sustento. Uma vez ou outra paro o carro no alto da Rua da Areia, subo até chegar ao busto de Aristides Lobo, respiro o ar do dia presente que sempre vem com os da subida dos anos 1950, sem um tostão no bolso, mas me sentindo no amparo de vida e de esperança que o céu verde dos grandes oitizeiros me oferecia. E continuam oferecendo ao nonagenário de hoje como aos esperançosos de todas as idades. É ela, a memória, que vem me sustentando. Raspando a rapadura, mas sem sair dela”.
Assim como foi dito pelo escritor francês Anatole France, para Gonzaga Rodrigues, o futuro parece oculto. O presente, árido e turvo. Só o passado pode ajudá-lo a escapar das misérias e de si mesmo. “Não tem sido fácil escrever fora do meu tempo. Não só escrever, viver mesmo. Não é de hoje esta minha dificuldade. Começa com o comportamento externo ao meu, a desatualização no dia a dia, e se agrava com a linguagem, que é outra, de outro mundo, outra cultura, tanto para ler, ouvir, andar e mesmo ver. Sou do jornal que me escaldou na linotipo, hoje um ferro-velho que, não só me lembra, como ainda me causa emoções”.
Mas se a crônica está fadada à obsolescência das perecíveis páginas dos jornais, a de Gonzaga Rodrigues abriga o próprio curso da história. “Hoje eu falo para um público que já não mais existe. Sou um homem de emoções retardadas”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 18 de junho de 2023.