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"Uma coleção de dores"

publicado: 05/07/2023 09h07, última modificação: 05/07/2023 09h07
Banda Totonho e os Caba lança disco sobre relacionamentos: ‘Canções pra macho chorar e roer as unhas’, gravado ao vivo na capital paraibana
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Novo disco foi gravado durante um show sem plateia na programação do ‘Natal na Usina’, em dezembro de 2020, na Sala Vladimir Carvalho, da Usina Cultural Energisa, em João Pessoa - Foto: Fabi Velôso/Divulgação
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EP não é sobre sofrência, segundo Totonho, “é uma conversa para dentro” - Imagem: Divulgação
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Canções pra macho chorar e roer unhas - Arte da capa do disco é de Sílvio Sá.jpeg

por Joel Cavalcanti*

Totonho tem feito do pessoense Seu Pereira um de seus parceiros mais recorrentes, dividindo shows e novas composições, em uma produção que já soma 20 canções. Duas delas (‘Skerin’ e ‘Um dia’) estão presentes em Canções pra macho chorar e roer as unhas, novo EP do músico de Monteiro. E ‘Um dia’ dá bem o tom da natureza de sua dor. “Eu reclamava que as meninas iam para os nossos shows e pediam cortesia para Pereira, e ele não dava. Mas chegavam para pedir a mim, e eu dava. Quando elas entravam no show, bebiam da minha cerveja, fumavam do meu cigarro, e no final do show iam embora com Pereira”, conta Totonho, fazendo graça, ainda que sofrendo com isso.

Um dia você vai gostar de mim / E por descuido vai dormir comigo / Um dia ainda vai me encarar / Do jeito que olha pros meus amigos / Um dia você vai juntar as peças / Vai procurar aquela que não acha / Vai descobrir embaixo das cobertas / Que eu sou a única que encaixa”. É de lamentos como esse, centralizados na desgraça do homem, e não na culpa feminina, que se faz o lançamento das sete faixas gravadas ao vivo, sem a presença de plateia. “É uma coleção de dores que eu tenho guardado para não esquecer nunca mais. Não é um disco de sofrência, de forma alguma, mas é uma conversa para dentro. São narrativas de situações que eu passei em relacionamentos. É um enxugamento do discurso de um macho decaído”, descreve Totonho.

O álbum deixa de lado as batidas eletrônicas que marcaram os dois trabalhos anteriores (‘Samba Luzia Gorda’ e ‘Coco ostentação’) e aposta nas texturas eletroacústicas de um disco intimista. “Quando veio a pandemia, eu tive que baixar a poeira e olhar o que tinha juntado nas minhas gavetas”, justifica Totonho. O que predomina na instrumentação são as cordas que acompanham Totonho e que são comandadas por Luís Umberto (violão 7 cordas), Potyzinho Lucena (cavaquinho) e Chico Limeira (guitarra). Canções pra macho chorar e roer unhas tem ainda a participação de Paulo Ró em ‘Abalada’, que fecha o disco. “Paulo Ró é meu mestre. É o cara que eu mais admiro musicalmente. Ele é um autodidata que afina o violão pela vibração da corda. É um desgraçado”. Com produção de Totonho e Felipe Gomes, as músicas já estão disponíveis nas principais plataformas de música.

As composições cheias de trocadilhos poéticos e filosofias de bar estão permeadas por histórias reais de Totonho. Nelas, é fácil perceber a figura masculina submissa ao poder de fogo de uma mulher, e à mulher bonita e gostosa que tem mais moral que ele. Uma servidão resignada que vem de casa. “Eu vivi um matriarcado. A minha mãe mandava em tudo, organizava as contas da casa e gerava dinheiro. Mas ela sempre teve a preocupação de que as pessoas não vissem que meu pai era controlado pela mulher. Hoje, não haveria problema nenhum em dizer isso, mas no interior, há 50 anos, o buraco era mais embaixo. Eu cresci sob essa lógica”, diz Totonho. O macho que chora e rói as unhas é, antes de tudo, o filho de Dona Luzia do Bolo.

“Minha mãe, que já morreu, quando ouviu ‘Abalada’, disse que era música para arrancar ovo com alicate. Olha o desespero! Ela me dizia: ‘Totonho, a música que você faz não é estranha. Estranho é você’”, lembra Carlos Antônio Bezerra da Silva, nome de batismo dado por sua mãe. “Tudo que eu pratico de arte é inspirado nela”. Outra inspiração vem das noites quando o filho chora e a mãe não vê, de uma solidão profunda que o músico confessa ter passado para escrever, por exemplo, ‘Melancolia’. O EP traz ainda duas regravações (‘A vítima’, ‘O vaqueiro’) que foram originalmente lançadas em Totonho & Os Cabra, seu disco de estreia, apresentado em 2001.

As duas músicas só entraram para o álbum devido a falta de qualidade técnica das demais para serem incluídas no EP. “Eu tive que recorrer a essas músicas. É o resultante de uma empreitada bastante sofrida, tanto pelo sistema de produção quanto pelas próprias composições”, compara Totonho. O disco com masterização de Carlos “Cacá” Lima, do estúdio YB Music, foi gravado em João Pessoa, no Estúdio Peixe Boi, e, ao vivo, durante o Natal na Usina, em dezembro de 2020, na Sala Vladimir Carvalho – cuja acústica dificulta bastante uma captação de qualidade. Devido às restrições causadas pela pandemia, não havia público presente no momento do show. Poucas horas antes de subirem ao palco, havia chegado a notícia que o pai do músico Chico Limeira tinha morrido vítima de Covid-19. “Ficou um baixo astral, e a gente tocou virado para dentro. Tocamos sob uma ode de tristeza profunda pela perda de um homem exemplar”.

Canções pra macho chorar e roer unhas - Arte da capa do disco é de Sílvio Sá.jpeg
EP não é sobre sofrência, segundo Totonho, “é uma conversa para dentro” - Imagem: Divulgação
A decisão de fazer do show uma gravação de disco surgiu na semana da apresentação, e os arranjos foram definidos por cada um dos músicos durante os ensaios, mas a ideia do formato e do repertório já vinham de muito tempo. Há exatos 10 anos, Totonho havia se apresentado no Sesc Santos (SP), em um show com o mesmo título do EP que agora está lançando. “Na época, eu queria fazer um show do mesmo jeito que o Zeca Baleiro estava fazendo com o álbum Líricas. E eu estava com os músicos que haviam gravado com o Zeca”, afirma Totonho sobre o disco acústico do maranhense, lançado em 2000. “Mas o trabalho de eletrônica estava comendo com força e eu não iria parar para fazer uma parada de voz e violão e ficar parecendo com MPB, coisa que eu não flerto muito”.

Apesar de este ser um trabalho com muitas diferenças do que Totonho já havia apresentado em seus álbuns até então, todas as características que deram a Totonho a qualidade de ser um artista singular na Paraíba estão colocados em Canções pra macho chorar e roer as unhas, como, por exemplo, sua experimentação com os timbres e as influências do repente, que deve ter uma continuidade. “Esse disco vai ter uma sequência. Ainda não sei se será gravado em estúdio com toda a obra de Canções pra macho..., que são 14 músicas; ou se vou gravar novamente ao vivo em outro lugar”.

Se um homem com uma dor é muito mais elegante, como dizia o músico Itamar Assumpção, Totonho tem muito mais galhardia para esbanjar.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 5 de julho de 2023.