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Uma questão feminina

publicado: 12/06/2025 09h40, última modificação: 12/06/2025 09h40
O filme “Ainda Não É Amanhã”, sobre o aborto, tem sessão com debate amanhã, no Cine Banguê
ainda nao e amanha

por Esmejoano Lincol*

A premissa do filme Ainda Não É Amanhã, em cartaz no Cine Bangüê, em João Pessoa, coloca a protagonista Janaína, personagem da paraibana Mayara Santos, diante de um conflito que pode definir todo o seu futuro: manter sua gravidez e trancar, com isso, a faculdade de Direito que cursa atualmente? Ou optar por interromper a gestação e seguir com seus projetos profissionais? O longa da pernambucana Milena Times ganha uma sessão especial amanhã, às 19h, com a presença da realizadora, de Mayara e da atriz Clau Barros; a pesquisadora Bella Valle mediará o debate com o público. Os ingressos custam R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Janaína mora com a mãe Luciana (Clau) e a avó Rita (Cláudia Conceição) num conjunto habitacional da periferia de Recife e é a primeira de seu núcleo familiar a aproximar-se, concretamente, de um diploma universitário. Ela namora Jeffinho (Mário Victor), que lhe fornece apoio quando descobrem, juntos, a gravidez.

Mas diante do risco de perder sua bolsa numa faculdade particular, ela tomará, sozinha, as decisões que impactarão o seu próprio corpo. Ainda Não É Amanhã alcançou êxito nas mostras de cinema em que circulou, no ano passado. No Festival do Rio, Mayara foi eleita a melhor atriz, dentro da sessão Novos Rumos. Já no Fest Aruanda, em João Pessoa, o longa-metragem levou para casa sete troféus. 

Toda essa trajetória teve início em 2016, quando o roteiro, também escrito por Milena Times, começou a ser desenvolvido, de forma paulatina. Durante esse período, a realizadora participou de laboratórios de desenvolvimento, que foram decisivos na consolidação da história e no aprimoramento dos perfis dos personagens.

“Mas para além dos labs, gosto de frisar a importância de termos aprovado o projeto em um edital de desenvolvimento logo no início, porque foram esses recursos que garantiram que eu me dedicasse, exclusivamente, à pesquisa e à escrita e aprovasse a produção, já no ano seguinte. É preciso investir nessas etapas de desenvolvimento também”, sustenta.

Ainda que não tenha buscado inspiração em um caso real específico, a vivência pessoal da diretora e o relato de colegas e amigas foram essenciais para a constituição do debate sobre a autonomia do corpo da mulher no filme. As mudanças sociais e políticas que acompanharam esse processo também ajudaram a “irrigar” a história e a pensar novos rumos e escolhas estéticas.

“Nunca tive a ilusão de que conseguiria, com um único filme, dar conta da diversidade e complexidade dessas histórias. Mas várias delas se misturam e se completam nesse universo, espelhando a realidade de muitas. Ter acesso a tantos relatos sem dúvida contribuiu para enxergar a questão por perspectivas distintas”, garante.

Milena Times encontrou na graduação em Jornalismo uma janela para o trabalho no cinema e acumula, hoje, quase duas décadas de experiência, imersas num momento importante de efervescência da cena pernambucana. Mas comentando sobre os espaços destinados a mulheres e a grupos minoritários, a realizadora ressalta que o audiovisual brasileiro sofre de uma “desigualdade sistêmica”, que deve ser combatida.

“Desde a seleção de editais, passando pelo ordenamento das equipes de produção, curadoria e programação, até a imprensa. Mas isso não vai acontecer de forma espontânea. Por isso é tão importante a disputa no âmbito das políticas públicas e o engajamento na micropolítica cotidiana”, sugere.

Já para Mayara Santos, guarabirense, esse é o seu primeiro longa, depois de algumas experiências no teatro e no curta Flora, a Mãe do Rei, em que interpreta a mãe de Jackson do Pandeiro. A vaga no elenco em Ainda Não é Amanhã surgiu por meio da produtora Bruna Leite. O primeiro teste foi sozinha, com a diretora. “A maneira que Milena mediou foi majestosa, sensível. Semanas depois, fui chamada para uma segunda etapa, em Recife. Viajei sozinha pela primeira vez, tudo novo, mas fui com uma coragem grande. Voltei para João Pessoa com bastante expectativa e entregando o que tinha sentido ao universo. Dias depois recebi a ligação de Bruna e chorei de alegria”, rememora.

A composição do personagem foi complexa e tomou muitas frentes. Milena teve acesso a pesquisas que aprofundaram seu conhecimento sobre o tema, como a informação de que o aborto foi, em 2013, a quinta maior causa de morte de mulheres no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). As trocas com a preparadora de elenco Amanda Gabriel também foram essenciais para a atriz. “E também me vejo muito em Janaína. Eu sou uma jovem preta, periférica, que vê possibilidade de ascensão na vida através dos estudos. O medo de perder tudo, de decepcionar, a obstinação de segurar o peso da decisão também. Isso tudo foi descoberto posteriormente, mas é algo que me aproximou muito dela”, informa.

Quando perguntada sobre as discussões suscitadas por Ainda Não É Amanhã, Mayara afirma que o longa propõe um cenário acolhedor para a sua personagem — situação que, na vida real, poderia evitar mortes de mulheres gestantes. Manter Janaína próxima do público o tempo todo, inclusive por meio dos planos do filme, amplia nossa conexão com a jovem.

“Durante as sessões de estreia em algumas cidades, ouvimos relatos de pessoas que eram contra o aborto, mas que compreendiam ser uma questão de saúde pública. Direcionar o olhar para esses corpos e mostrar quão urgente é a temática faz com que a gente enxergue isso de maneira frontal, cotidiana, crua, simples e necessária, como deve ser”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de junho de 2025.