“Uma viagem interior, feita de muitas questões existencialistas, da percepção da natureza e de tudo o que nos rodeia, ao mesmo tempo percebendo como tudo isso é uno com a nossa existência material, física”. A cantora e compositora Val Donato assim define o conceito de seu segundo álbum, Matriz (Cayana/YB Music), lançado nas plataformas de streaming.
Iniciado em 2017, a partir de uma reunião no Litoral Sul da Paraíba entre Val, o guitarrista Rafael Chaves e o produtor musical Giordano Frag, o trabalho propõe, em suas múltiplas camadas sonoras, uma intensa experiência imersiva, rica em camadas, inovações e colaborações especiais. O trio de amigos desenvolveu as composições em um processo criativo que priorizou, inicialmente, a espontaneidade.
“A ideia era deixar a criatividade fluir sem muito pré-julgamento, aceitando e respeitando as ideias que iam surgindo”, relembra Val. As canções foram surgindo naturalmente, dialogando entre si em meio a um contexto de partilha musical. A gravação, realizada no G&A Estúdio, em Campina Grande, demorou cinco anos para ser concluída, sendo impactada pela pandemia do Covid-19.
Som (do) infinito
O álbum propõe uma reflexão sobre a conexão entre todos os elementos do universo. “Eu entendo que tudo é energia vibrando em frequências diferentes, o que faz as coisas se materializarem da forma com que são”, define Val, ressaltando a contemplação da natureza como uma grande fonte de inspiração.
“Falo muito no mar, no céu, nas estrelas, na raíz”, elementos recorrentes nas letras das canções, as quais simbolizam tanto a imensidão do universo quanto as origens humanas. Essa perspectiva está presente desde a faixa de abertura, O infinito, composta em 2017 e lançada como single em 2019.
A música sintetiza o tom reflexivo e contemplativo do álbum, que se encerra com elementos sonoros que criam uma ideia de ciclo. “A proposta é que o álbum seja ouvido na íntegra, pois as faixas dialogam entre si”, afirma a compositora.
Embora as referências e influências possam ser percebidas, nomeadamente a Nação Zumbi — inclusive com participação especial de Toca Ogan, percussionista do grupo recifense, na faixa homônima ao álbum, Matriz — por suas contribuições do rock e do regionalismo associados a elementos percussivos de clara intensidade, Val Donato destaca a originalidade do álbum.
“Tudo vem de forma muito natural e inconsciente, uma coisa que estava ali impregnada e que se manifestou nos arranjos das músicas. Como a própria experiência de composição das músicas, eu creio que esse disco traz sim, em si — apesar de ter referências e influências, lógico —, uma originalidade que me deixa muito feliz”.
Val destaca que um dos grandes diferenciais de Matriz em relação a Café Amargo (2015), seu primeiro álbum, é o fato das músicas terem sido compostas em um mesmo contexto. “É um álbum que já nasceu um álbum, não é uma coletânea de músicas isoladas reunidas em um álbum”, feito para se ouvir de uma vez só, na íntegra.
“Tanto que se você ouvir com atenção vai perceber elementos que unem a música com a próxima faixa, e a última música encerra dando acordes de frases da primeira música. É uma continuação, como se fosse realmente um som infinito”.
Luz na contramão
Matriz não é sobre músicas românticas, nem rock de protesto. Em arranjos como os de Força vital ou Viver pra duvidar — essa última em distorções diluídas em meio a uma fusão sutil de ritmos caribenhos — ou mesmo na letra de Estrelas (composição de Giordano Frag e Juzeh Abrantes), “ao som dos pioneiros rockstars”, é que o rock se mostra, a destilar o “espírito” de sua força, além de, claro, a partir do timbre potente da voz da cantora.
Ela conta que o título foi escolhido às vésperas de envio do material para as plataformas de streaming. “Desde o início a ideia era que o nome fosse O Infinito, mas me veio uma perturbação às vésperas de lançar. Queria um termo que representasse melhor a mensagem do disco. Matriz tem realmente essa carga, esse simbolismo de ser a origem de tudo, elemento que dá origem a todos os outros, como uma raiz”.
Embora utilize instrumentos tradicionais como zabumba, triângulo e pandeiro em muitos momentos, o álbum busca se distanciar dos padrões convencionais, distorcendo e desconstruindo suas sonoridades. “Invertemos notas graves e agudas para desconstruir a ideia pré-moldada do que seria tocar um baião na zabumba”, explica. O resultado é uma sonoridade que remete à ancestralidade, mas com uma abordagem contemporânea.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de dezembro de 2024.