Ao dizer que “no princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus”, a Bíblia simboliza algo que a peça Ficções, baseada em obra seminal do professor israelense Yuval Harari, descreve de forma peculiar: a palavra é um elemento tão ou mais antigo do que o homem. E o seu poder de ação é, de fato, criador de mundos. O texto encenado, a partir do famoso livro Sapiens, apresenta a atriz Vera Holtz dando voz a relatos de diversos seres vivos da Terra. Seria tudo invenção? Com este e outros questionamentos, Ficções chega esta semana ao palco do Teatro Facisa, em Campina Grande, para três apresentações — amanhã, sexta-feira e sábado, sempre às 20h. Os ingressos, a partir de R$ 21, podem ser adquiridos no site Sympla.
Friccionando histórias
O texto-base de Ficções é o best--seller Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, lançado em 2011. A ideia de Harari, exposta no subtítulo do seu livro, é a de condensar milhares de anos em cerca de 400 páginas, lançando, por fim, a tese de que a cooperação e a capacidade de criar histórias são dois dos elementos que ajudaram o ser humano a se tornar a espécie dominante nos processos da evolução. A adaptação da obra para os palcos ficou a cargo do dramaturgo fluminense Rodrigo Portella. Vera, por sua vez, é acompanhada pelo violoncelista Federico Puppi, que executa a trilha sonora do espetáculo ao vivo.
"Países, ideologias, religiões, essas são realidades imaginadas pelo homem e que ajudam a formar a humanidade"
- Vera Holtz
Os artistas convencionam que todas as estruturas e discursos inventados pelos seres humanos — das palavras às nações, passando pelo modo como nos referimos a todos eles — são ficcionais. Essa perspectiva é compartilhada por todos os personagens singulares que são vistos na peça, dentre eles, um fóssil, um asno e, claro, o próprio homo sapiens. “Países, ideologias, religiões, essas são realidades imaginadas pelo homem e que ajudam a formar a humanidade. Tudo acaba sendo crença. E mais: ele conta para o outro, que passa a acreditar coletivamente naquilo. Essa é a base da nossa cooperação”, detalha Vera Holtz.
A intenção inicial de Portella era nomear a peça como Fricções, com a letra “R”, não apenas como trocadilho para “ficções”, mas para emular o método de obtenção de fogo em priscas eras, a partir do atrito entre paus e pedras. “Só que esse nome era meio agressivo. Acabou ficando Ficções, porque o ‘fogo’ do espetáculo está na criação das narrativas. Sobre o título final ser este, nós contamos a história das ficções humanas. Elas são reais, porque os seres humanos acabam acreditando nelas”, declara Federico Puppi.
Animando o público
A ideia de montar esse espetáculo, em 2022, partiu do produtor Felipe Heráclito Lima, antes mesmo de Rodrigo Portella ter lido o livro. O processo de adaptação aconteceu à medida que o dramaturgo conhecia o texto de Harari. Foram criados vários personagens e cenas, que se mantiveram ou “caíram”, conforme o texto era afinado. “Portella trabalha com a performatividade. Então, eu passo por todas essas realidades sem deixar de ser eu mesma. O espetáculo foi feito em cima desta ‘identidade Vera Holtz’, criada ao longo dos anos, na minha carreira. Eu vou me multiplicando, com o auxílio do ritmo e da voz”, descreve a atriz.
Dividido em blocos, o espetáculo é definido por Vera e Federico Puppi como sendo um grande teatro de revista, em que cada personagem se apresenta em um segmento próprio. Também há um momento de interação com a plateia - esta passa a fazer parte da peça. “O fato de não ter uma linha temporal facilita o processo de experimentação. A alternância entre esses blocos propicia a quebra de assunto. É uma revista contemporânea, mas sobre um assunto acadêmico. Um conjunto de paradoxos”, pondera Federico.
Vera afirma que o espetáculo que veremos em Campina, neste final de semana, tem muitas perguntas e poucas respostas. Ela também diz que o público reage não apenas quando provocado e que, desde a estreia, há dois anos, a peça é lida de formas distintas. “Em cada local, o espectador ‘pluga’ de maneira diferente, funcionando como uma onda. Em cena, a gente sente quando o público ‘vem’. Nas vezes em que ficamos mais perto deles, terminamos o espetáculo aos prantos, porque a gente sente essa energia”, garante a atriz
Buscando as origens
No final de agosto, Vera Holtz recebeu o troféu de melhor atriz no Prêmio Grande Otelo, em reconhecimento por seu papel-título no longa-metragem Tia Virgínia, de Fábio Meira. No filme, ela contracena com as atrizes Arlete Salles e Louise Cardoso, que interpretam suas irmãs, e a decana Vera Valdez, que faz sua mãe. “Nós rodamos antes da pandemia. Esse papel foi uma coisa maravilhosa e o troféu me deixou muito honrada. Só não pude ir buscar, porque já estava em turnê, em Salvador”, relata.
Comentando sobre o processo de amadurecimento dos artistas, a atriz de Ficções afirma que, com o passar da idade, há a diminuição de boas oportunidades na televisão, motivada por mudanças de paradigmas nas emissoras. “A Globo tinha um elenco tradicional e fixo, com algumas poucas figuras que eram contratadas para cada novela. Isso tudo foi mudando e sacrificando os papéis para uma determinada época da vida. Hoje os personagens principais mais velhos têm, no máximo, 50 anos”, detalha.
As portas para os atores da terceira idade estão se abrindo, segundo Vera, no streaming, que opera sobre outras lógicas. O sucesso de artistas maiores de 60 anos no teatro brasileiro também sinaliza um outro caminho para os idosos. A intérprete cita o êxito de Fernanda Montenegro, Othon Bastos e Nathália Timberg em peças que estão em cartaz no país. “Essa carência na televisão se contrapõe com os palcos. Os atores estão se organizando, procurando textos e migrando para um novo suporte. É a busca de suas origens, como artistas, no teatro”.
FICÇÕES
- Texto e direção: Rodrigo Portella, baseado no livro Sapiens, de Yuval Harari. Elenco: Vera Holtz e Federico Puppi.
- De quinta a sábado, às 20h no Teatro Facisa (Unifacisa, Av. Sen. Argemiro de Figueiredo, 1901, Sandra Cavalcante, Campina Grande)
- Ingressos: de R$ 21 (balcão/ meia) a R$ 160 (plateia/ inteira), antecipados na plataforma Sympla.
- Classificação indicativa: 12 anos.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de setembro de 2024.