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Vladimir Carvalho revela processo de criação de seu novo documentário

publicado: 01/10/2016 00h05, última modificação: 01/10/2016 11h05
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Natural de Alagoa Grande, Vladimir Carvalho conquistou o cinema brasileiro com seu olhar apurado e a sutileza de suas abordagens - Foto: Divulgação

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Lúcio Vilar - Especial para A União

Aos 81 anos, o ‘conterrâneo velho de guerra’ Vladimir Carvalho segue fiel à estética documentarista e exibindo um vigor típico de décadas atrás. É o caso de seu novo filme Cícero Dias – O Compadre de Picasso, premiado na Mostra Brasília 2016, este ano, produzido a duras penas. Quixotesco? De certo modo, sim, e isso é o que o leitor poderá conferir na conversa que a reportagem manteve, em Brasília, com este que continua sendo um dos mais importantes expoentes do gênero de não ficção no país, além de muito amado pela cidade que o ‘adotou’ há 50 anos.

Produção (sem recursos oficiais)

Sigo à risca o figurino ideológico de mais de cinquenta anos atrás, quando abracei o cinema como minha atividade principal, estivesse eu numa boa ou desempregado, como aconteceu depois do golpe militar de l964. Quer dizer, sempre lutei ao lado dos amigos por melhores condições de produzir cinema no Brasil. Em Brasília como no Rio, ao longo de todos estes anos, estive no movimento pela criação das associações de classe, acompanhei delegações e comissões para reivindicar junto a ministros e até presidentes da república. Tem sido assim até hoje e continuará sendo. Entretanto, no plano pessoal, depois dos oitenta anos pra cá, num acesso de quixotismo que nem sei explicar, reivindico para mim, como se fosse uma prerrogativa de velho, cuidar eu do meu próprio nariz, sem interveniência de editais, leis, datas e exigências, que os mais jovens tiram de letra, mas que no meu caso se tornou uma espécie de suplício. Ou será a velha impaciência de idosos entediados? Por isso levei tanto tempo para concluir um modesto filme tal era minha escassez de pecúnia própria.

Compadre de Picasso

Posso dizer que o Cícero Dias é uma “memória” de minha adolescência. Presenciei, por volta de 1949-50, uma acalorada discussão de meu pai com um tio meu reacionário empedernido. Segui sempre o meu velho, artista nato, jornalista interiorano, escrevendo em A Folha, de Itabaiana. Mas Cícero voltou sempre ao meu imaginário desde quando fundei junto com os pintores Archidy Picado, Raul Córdula e Breno Mattos um ateliê coletivo chamado Escola Santa Rosa, para homenagear o grande pintor e cenógrafo paraibano. Reencontrei Cícero, não em pessoa, mas numa retrospectiva em Paris. Foi tudo de que precisava para apaixonar-me e pensar no filme que tinha diante dos meus olhos. O “encontro” se deu em 2005, quando gravei a exposição e entrevistei sua viúva e a filha, apadrinhada de Picasso. Somente em 2014 voltei ao assunto, porque antes estava tratando de outros filmes. O resto está resumido no documentário, que, de certa maneira, já não me pertence.

Ciclo de personas artísticas

Não foi deliberado, mas, dando uma olhada no conjunto de filmes até aqui realizados, cheguei à conclusão de que no fundo produzi sem querer grupos de trilogias involuntárias. No Nordeste, O País de São Saruê, O Homem de Areia e o Evangelho Segundo Teotônio; em Brasília, Conterrâneos Velhos de Guerra, Barra 68 e Rock Brasília, e, com boa vontade, eu diria, repetindo O Homem de Areia que eu tenho também uma trilogia do “modernismo” juntando-o com O Engenho de Zé Lins e Cícero Dias, o compadre de Picasso. José Américo, o homem de areia, também grande escritor, com A Bagaceira é o precursor modernista dos chamados Romances de 30, no clássico veio da Semana de Arte Moderna de 22.

Baú de preciosidades

Faz anos venho recolhendo material em torno da Esplanada dos Ministérios, logradouro em princípio pensado para ser um lugar da chamada escala bucólica de Brasília, um sítio para o passeio dominical do cidadão comum com a família. Seria ornada de exemplares da flora brasileira, onde se encontrariam face a face o cardeiro nordestino com a araucária do sul, a castanheira amazônica com raridades da mata atlântica e assim por diante, tudo intercalado por plácidos espelhos de água sob a luz faiscante do Planalto Central. Mas, na pressa em que foi pensada e construída, esse pretenso projeto deixou de ser cogitado. E o que se vê hoje? São os problemas mais cruciais do país que desfilam à volta do Congresso e do Palácio do Planalto, são as crises que rondam o poder e o povo: hora são os sem terra embalados em suas causas e exigências, ora são os da UDR, os “donos” da terra com seus tratores desfilando suas pesadas ideias, e, mal saem de cena, são os indígenas paramentados para a “guerra” que ocupam o espaço. O grande paisagista e artista plástico Burle Marx era o seu autor. É toda uma enorme parcela da história e da vida nacionais que por ali transita, com suas contradições e lutas, uma pauta aberta também ao cinema que tudo quer documentar. Tô nessa!

Documentário & Ficção

Este intercurso vem se intensificando não é de hoje. Há quase quarenta anos, quando finalmente saiu O País de São Saruê, até ali interditado pela Censura, Jean Claude Bernardet disse num ensaio que meu filme apresentava uma certa mescla de ficção e realidade. Ensaiei também no Teotônio quase sem perceber. É fatal que aconteça num tempo de liberdade para experimentar. Às vezes, a coisa vira um monstrengo sem sentido.

Crise política

Toneladas de paciência histórica serão necessárias até chegarmos a bom termo. De minha parte, faço como Minas Gerais, estou onde sempre estive: entrego-me à correnteza da história, esperando o melhor.

Premiações

Sobre os prêmios de Brasília com que fui agraciado, nunca recebi uma tão adequada dose, uma injeção mesmo, de cânfora, renovando-me as forças e recolocando-me na liça.