por Joel Cavalcanti*
O que determina a personalidade artística de uma pessoa? Descobrir isso talvez seja tão difícil quanto procurar explicar a própria criatividade. Mas a formação diversa da rapper pessoense Mebiah, nascida há 32 anos como Aline Bezerra, talvez dê algumas indicações do que vem afetando a construção de uma nova classe talentosa na Paraíba. Com apenas dois singles lançados cheios de referências no soul da black music contemporânea, a artista consegue balancear temas áridos comuns a uma realidade de racismo estrutural e de machismo com a suavidade de sua voz. “Quero que as pessoas enxerguem a artista que eu sou, a força que eu carrego, a minha luta diária”, afirma a cantora.
Foto: Thiago Trapo/Divulgação
Para conceber a versatilidade da voz que se encaixa desde em estéticas mais padronizadas pelas cantoras tradicionais da MPB ou em baques ritmados do hip hop, Mebiah participou os sete anos de idade do coral infantil da Universidade Federal da Paraíba enquanto recebia em casa influências de várias mulheres, como as brasileiras Elza Soares e Alcione, e as norte-americanas Erykah Badu e Lauryn Hill, espelho maior de sua carreira. “Mais do que me pautar pelos estilos musicais, eu gosto muito do que elas representam. Tento absorver ao máximo essa força feminina para poder caminhar e fazer as coisas acontecerem”, destaca a cantora, que reconhecia desde muito cedo a sua vocação, mas não sabia como transformar esse potencial em uma carreira profissional e entrar para o mercado da música em João Pessoa.
Aos 17 anos, Mebiah já escrevia suas próprias composições e nutria muito gosto pelos instrumentos, sempre interessada por tudo que acontecia na música. Em meados de 2018, passou a ser convidada a cantar em parcerias com outros artistas e fazer participações especiais em bandas locais interpretando canções com fortes críticas sociais em um discurso recheado de empoderamento feminino e negro. Mas foi através da inscrição no 2º Festival de Música da Paraíba, de 2019, organizado pelo Governo do Estado da Paraíba, que essa perspectiva começou a mudar. “Foi quando comecei a me relacionar com o pessoal da cena cultural e as portas começaram a surgir para eu abrir shows de pessoas grandes”, lembra Mebiah, que defendeu a canção ‘Meus ideais’, chegando à finalíssima. Da competição estadual, ela foi dividir o palco com o rapper Djonga, um dos nomes mais influentes da música preta nacional.
Apesar de hoje já ter acumulado trabalhos com alguns nomes de carreiras mais solidificadas como Filosofino, Amaro Man e Haxixe Xavier, Mebiah segue um caminho ainda muito autônomo e apartado da comunidade artística local. “Eu sou meu próprio movimento. Me articulo, me envolvo e procuro entrar nessa cena de João Pessoa, porque não é fácil. É por isso que tenho buscado fazer as coisas de forma independente, abrindo minha própria produtora para trabalhar da forma que eu quero”, considera a pessoense, referindo-se a Casa Solar, um espaço que promove a cultura em geral com produção, gravação, oficinas e eventos. Ela protesta sobre a desunião e descredibilização entre essa classe de trabalhadores, e um dos possíveis motivos de Mebiah se ver ainda distante dos círculos de influências na música local se justifique pela forma única que ela mesma enxerga do som que produz desde o lançamento, em 2020, de ‘Preta com dourado’.
“Já vi alguns artistas fazendo algo levado para o soul, com uma pegada black music e essa essência que leva ao jazz e ao blues, mas não vejo muitas pessoas fazendo isso por aqui. Acho que as coisas estão muito iguais às de sempre e, por isso, eu vou por esse caminho que eu gosto, que me inspira mais”, explica ela, que no mês passado lançou mais uma música que deixa ainda mais claro o caminho por qual ela pretende seguir. A música ‘Calma preta’ é uma criação inteiramente de Mebiah, desde a composição, da construção rítmica das batidas até a produção visual. O single que procura contar parte da história da artista foi bem recebida nos circuitos especializados da música. “Estou em um momento da minha carreira que estou podendo pensar e idealizar o que eu quero”.
‘Calma preta’ é a faixa com a qual Mebiah deve abrir o seu primeiro EP chamado Mundo preto, preto do mundo, com previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano. Enquanto permanece investindo no aprofundamento de seus conhecimentos de canto e de instrumentos, ela se preocupa com as estratégias de lançamento do álbum com seis faixas, que estão em processo de finalização. Mas antes, em junho, deve chegar ao público o single ‘Nunca vão’, com produção de Pedro Regada. O trabalho vai reforçar o talento e o caráter diverso do rap melódico de Mebiah. “Não gosto de estar conectada a um só lugar. Gosto de poder filtrar em outras essências e trazer o rasgado de minha voz e a potência do canto negro. Não me intitulo apenas como uma cantora de R&B porque minha voz pode ir em várias vertentes de estilos”.
O que a voz dela não confunde é a suavidade com o peso de seu discurso, com a força de seus verbos e a pertinência de suas lutas. “A cultura de resistência é a resposta ao revólver que nos apontam. É o afeto em uma linha consciente e poética que atravessa toda a produção artística, pelo poder que atinge grupos sociais diversos. Meu caminho é manter o discurso de radicalização da postura ativista. O caminho é construir uma subjetividade que sente cada perda e cada vitória como um processo”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 1 de maio de 2022